[…] Lida de um astro distante, a escrita maiúscula de nossa existência terrestre levaria talvez à conclusão de que a terra é a estrela ascética por excelência, um canto de criaturas descontentes, arrogantes e repulsivas, que jamais se livram de um profundo desgosto de si, da terra, de toda a vida, e que a si mesmas infligem o máximo de dor possível, por prazer em infligir dor – provavelmente o seu único prazer. […] – Genealogia da moral. Parte III, seção 11
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Genealogia da moral. Parte III, seção 12:
Supondo que essa vontade encarnada de contradição e anti natureza seja levada a filosofar, onde descarregará seu arbítrio mais íntimo? Naquilo que é experimentado do modo mais seguro como verdadeiro, como real: buscará o erro precisamente ali onde o autêntico instinto de vida situa incondicionalmente a verdade. Fará, por exemplo, como os ascetas da filosofia vedanta, rebaixando a corporalidade a uma ilusão, assim como a dor, a multiplicidade, toda a oposição conceitual de “sujeito” e “objeto” – erros, nada senão erros! Recusar a crença em seu Eu, negar a si mesmo sua “realidade” – que triunfo! – não mais apenas sobre os sentidos, sobre a evidência, mas uma espécie bem mais elevada de triunfo, uma violentação e uma crueldade contra a razão: volúpia que atinge seu cume quanto o auto-desprezo, o auto-escárnio ascético da razão decreta: “existe um reino da verdade e do ser, mas precisamente a razão é excluída dele!…”. (Dito de passagem: mesmo no conceito kantiano de “caráter inteligível das coisas” resta ainda algo desta lasciva desarmonia de ascetas, que adora voltar a razão contra a razão: pois “caráter inteligível” significa, em Kant, um modo de constituição das coisas, do qual o intelecto compreende apenas que é, para o intelecto, absolutamente incompreensível.) – Devemos afinal, como homens do conhecimento, ser gratos a tais resolutas inversões das perspectivas e valorações costumeiras, com que o espírito, de modo aparentemente sacrílego e inútil, enfureceu-se consigo mesmo por tanto tempo: ver assim diferente, quer rever assim diferente, é uma grande disciplina e preparação do intelecto para a sua futura “objetividade” – a qual não é entendida como “observação desinteressada” (um absurdo sem sentido), mas como a faculdade de ter seu pró e seu contra sob controle e deles poder dispor: de modo a saber utilizar em prol do conhecimento a diversidade de perspectivas e interpretações afetivas.
De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guardemo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”, “espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si”; – tudo isso pede que se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpretativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobilizadas, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido. Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais completo será nosso “conceito”18 dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar a vontade inteiramente, suspender os afetos todos sem exceção, supondo que o conseguíssemos: como? – não seria castrar o intelecto?…
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