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Archive for the ‘Razão’ Category

A exposição aborda todas as questões que envolvem o funcionamento cerebral, dos neurônios à química, dos sonhos ao desenvolvimento da linguagem, da depressão à doença de Alzheimer e ajuda a desmistificar o órgão mais essencial do nosso corpo.

O quê: EXPOSIÇÃO CÉREBRO – O mundo dentro da sua cabeça

Onde: Porão das Artes – Prédio da Bienal

quando: De 07/08/2009 até 26/10/2009. Das 9h às 21h (entrada até 20h)

quanto: Ingresso: R$ 40,00 e R$ 20,00 (meia)

mais informações: no sítio clicando aqui, como, por exemplo, os dias nos quais abre (acho que de sexta a domingo) aos domingos e feriados os horários de início e término são diferentes.

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Talvez fosse de se esperar que eu começasse pela definição de "filosofia", mas, certo ou errado, não me
proponho a tal. A definição de "filosofia" variará segundo a filosofia que adotarmos; para começar,
diremos apenas que há certos problemas, julgados interessantes por certas pessoas, mas que não
pertencem, pelo menos até agora, a qualquer uma das ciências especiais. Esses problemas são de molde a
levantar dúvidas a respeito do que comumente se entende por conhecimento; e se as dúvidas requerem
resposta, esta virá unicamente por meio de um estudo especial, a que denominamos "filosofia." Portanto,
o primeiro passo para definir "filosofia" está na indicação de tais problemas e dúvidas – e será também o
primeiro passo no verdadeiro estudo da filosofia. Entre os tradicionais problemas da filosofia, há alguns
que não parecem merecer, em minha opinião, tratamento intelectual, por transcenderem nossa capacidade
cognitiva; desses problemas não cuidarei. Existem outros, porém, para os quais, embora não seja possível
encontrar-se solução definitiva neste momento, pode-se indicar o rumo para uma busca de solução, e o
tipo de solução que, em tempo oportuno, venha a se revelar possível.

A filosofia origina-se de uma tentativa obstinada de atingir o conhecimento real. Aquilo que passa por
conhecimento, na vida comum, padece de três defeitos : é convencido, incerto e, em si mesmo,
contraditório. O primeiro passo rumo à filosofia consiste em nos tornarmos conscientes de tais defeitos,
não a fim de repousar, satisfeitos, no ceticismo indolente, mas para substituí-lo por uma aperfeiçoada
espécie de conhecimento que será experimental, precisa e autoconsistente. Naturalmente, desejamos
atribuir outra qualidade ao nosso conhecimento : a compreensão. Desejamos que a área de nosso
conhecimento seja a mais ampla possível. Isto, no entanto, é mais da competência da ciência que da
filosofia. Um homem não vem a ser necessariamente melhor filósofo graças ao conhecimento de maior
número de fatos científicos; são os princípios e métodos, e as concepções gerais, que ele deva apreender
da ciência, caso a filosofia seja matéria de seu interesse. A missão do filósofo é, a bem dizer, a segunda
natureza do fato bruto. A ciência tenta agrupar fatos por meio de leis científicas; estas leis, mais que os
fatos originais, são a matéria-prima da filosofia. A filosofia envolve uma crítica, do conhecimento
científico, não de um ponto de vista em tudo diferente do da ciência, mas de um ponto de vista menos
preocupado com detalhes e mais comprometido com a harmonia do corpo genérico das ciências
especiais.

As ciências especiais desenvolveram-se pelo uso de noções derivadas do senso comum, tais como coisas
e suas qualidades, espaço, tempo e causalidade. A própria ciência tem demonstrado que nenhuma dessas
noções baseadas no senso comum presta-se completamente à explicação do mundo; nenhuma ciência tem
atribuição de empreender a necessária reconstrução de fundamentos. Isto deve ser matéria da filosofia.
Quero dizer, desde logo, que acredito ser este um empreendimento da maior importância. Acredito que
os erros filosóficos nas crenças do bom senso não somente produzem confusão na ciência, como também
prejudicam a ética e a política, em instituições sociais, e a conduta de todos na vida diária.

Não faz parte de meu mister, neste volume, apontar os efeitos práticos de uma má filosofia : minha
missão será puramente intelectual. Mas, se estou certo, as aventuras intelectuais já, empreendidas têm
efeitos em muitos rumos que parecem, à primeira vista, bastante remotos em relação ao nosso tema. 0
efeito de nossas paixões em nossas crenças constitui assunto favorito dos psicólogos modernos; porém o
efeito inverso, de nossas crenças sobre nossas paixões, também existe, embora não admitido por uma
psicologia intelectualista antiquada. Ainda que eu não pretenda discuti-lo aqui, devemos tê-lo em mente,
a fim de convir que nossos debates podem abranger matérias além da esfera ao intelecto puro.

Mencionei há pouco três defeitos das crenças comuns, a saber, que elas são convencidas, incertas e, em si
mesmas, contraditórias. É tarefa da filosofia corrigir esses defeitos na medida de suas possibilidades, sem
sobrecarregar o conhecimento. Para ser um bom filósofo deve-se ter o desejo forte de saber, combinado à
grande cautela em acreditar que se sabe; também se deve possuir a acuidade lógica e o hábito do
pensamento exato. Tudo isso, claro, é uma questão de grau. A incerteza, em particular, pertence, até certo
ponto, ao pensamento humano; podemos reduzi-la indefinidamente, embora jamais possamos aboli-la
por completo. Em conseqüência, a filosofia é uma atividade contínua, e não uma coisa pela qual
podemos conseguir a perfeição final, de uma vez por todas. A este respeito, a filosofia tem sofrido por
causa de sua associação à teologia. Os dogmas teológicos são fixos e encarados pelos ortodoxos como
incapazes de aperfeiçoamento. Filósofos têm sido tentados com freqüência a produzir sistemas finais
idênticos: não se contentam com aproximações graduais que satisfaçam os homens de ciência. Nisso, eles
me parecem enganados. A filosofia deve ser fragmentada e provisória como a ciência; a verdade
derradeira pertence aos céus, não a este mundo.
Os três defeitos que mencionei são interligados, e a percepção de um nos leva a reconhecer os outros
dois. Ilustrarei os três através de uns poucos exemplos.
Tomemos, em primeiro lugar, a crença em objetos comuns, quais sejam mesas, cadeiras é árvores. Todos
nós nos sentimos bastante seguros acerca desses objetos na vida comum, e no entanto nossas razões de
confiança são, em verdade, muito inadequadas. 0 ingênuo senso comum supõe serem eles o que
aparentam, embora isto seja impossível, uma vez que não parecem exatamente iguais a dois observadores
simultâneos. Pelo menos isso é impossível se o objeto é uma coisa física, a mesma para todos os
observadores. Se admitirmos não ser o objeto aquilo que vemos, então já não podemos sentir a mesma
segurança quanto à existência de um objeto. Esta é a primeira intromissão da dúvida. No entanto,
podemos nos recobrar de imediato do golpe e dizer que, naturalmente, o objeto é "realmente" o que a
física diz que ele é.l Ora, a física diz que uma mesa ou uma cadeira é "realmente" um vasto e incrível
sistema de elétrons e prótons em rápida movimentação, com espaços vazios entre si. Tudo isso está muito
bem. Mas o físico, como o homem comum, depende de seus sentidos para a existência do mundo físico.

Se o abordarmos, solenemente, e dissermos : "Quer ter a bondade de me dizer, como físico, o que é, em
realidade, uma cadeira?", obteremos uma resposta conhecida. Mas se dissermos, sem preâmbulos : "Há
uma cadeira aqui?", ele dirá : "Claro que sim. Não a vê?" A isso, poderemos responder de forma
negativa. Poderemos dizer: "Não, eu vejo certas extensões de cor, mas não vejo elétrons e prótons,
embora o senhor me garanta que eles formam uma cadeira." Ele talvez replique : "Sim, mas uma
quantidade de elétrons e prótons intimamente unidos assemelha-se a uma extensão de cor." "Que
pretende dizer com ‘assemelha-se’?", perguntaremos então. Ele tem a resposta pronta, Dirá que as ondas
de luz partem dos elétrons e prótons (ou, mais provavelmente, são refletidas por eles a partir de uma
fonte luminosa) , atingem o olho, produzem uma série de efeitos nos bastonetes e cones, no nervo ótico e
no cérebro, e finalmente causam uma sensação. Mas ele nunca viu um olho ou um nervo ótico ou um
cérebro, da mesma forma que jamais viu uma cadeira : apenas viu extensões de cor que, segundo diz, são
o que "se assemelham" aos olhos. Isto é, ele pensa que a sensação que temos ao ver (assim pensamos)
uma cadeira envolve uma série de causas, físicas e psicológicas, mas todas elas, por sua própria
observação, vinculadas essencialmente e para sempre à experiência externa. Todavia, ele pretende basear
sua ciência na observação. É óbvio haver aqui um problema para o lógico, um problema pertencente não
à física, mas a outra espécie de estudo. Este é o primeiro exemplo da maneira pela qual a busca de
precisão destrói a certeza.

0 físico crê inferir os elétrons e prótons do que observa. Mas a inferência nunca está claramente disposta.

em cadeia lógica, e, se estivesse, não pareceria assaz plausível para garantir muita confiança. Na verdade,
a evolução global dos objetos, desde o senso comum aos elétrons e prótons, tem sido governada por
certas crenças, raramente conscientes, mas que existem no homem natural. Estas crenças não são
inalteráveis, porém crescem e se desenvolvem como uma árvore. Começamos por pensar que uma
cadeira é o que aparenta, e que ainda continua no mesmo lugar, quando não a olhamos. Mas
descobrimos, mediante pequena reflexão, que estas duas crenças são incompatíveis. Se a cadeira persiste,
independentemente de ser vista por nós, então deve ser algo mais que uma mancha de cor o que vemos,
porque isso dependerá de condições extrínsecas à cadeira, tais como as, diferenças de luz, se estamos de
óculos azuis, e assim por diante. Isso força o homem de ciência a considerar a cadeira "real" como causa
(ou parte indispensável da causa) de nossas sensações quando vemos a cadeira. Assim estamos
comprometidos com a causação como uma crença a priori sem a qual não teríamos razão de supor que
existe absolutamente uma cadeira "real". Ademais, em vista da permanência, nós introduzimos a noção
de substância : a cadeira "real" é uma substância, ou coleção de substâncias, possuída de permanência e
do poder de provocar sensações. Esta crença metafísica tem afetado, de forma mais ou menos
inconsciente, a inferência de sensações para elétrons e prótons. 0 filósofo deve trazer tais crenças à luz do
dia, e ver se ainda sobrevivem. Muitas vezes descobrirá que elas morrem quando expostas.

Passemos agora a outro ponto. A evidência de uma lei física, ou de qualquer lei científica, envolve
sempre memória e testemunho. Temos de confiar no que nos lembramos ter observado em ocasiões
anteriores, e no que os outros dizem ter observado. Nos primórdios da ciência talvez fosse possível
dispensar, às vezes, o testemunho; não tardaria muito, porém, e todas as investigações científicas
começariam a ser construídas sobre resultados previamente checados, e a dependerem, por conseguinte,
do que outros haviam registrado. De fato, sem a corroboração do testemunho dificilmente teríamos maior
confiança na existência de objetos físicos. Às vezes pessoas sofrem alucinações, isto é, julgam perceber
objetos físicos, mas não são confirmadas, nessa crença, pelo testemunho de outras. Em tais casos,
decidimos que elas estão enganadas. É a similaridade entre as percepções de pessoas diferentes em
situações idênticas que nos torna confiantes quanto à causação externa de nossas percepções; quanto a
isso, quaisquer crenças ingênuas que tenhamos em objetos físicos dissiparam-se há muito tempo. Em
conseqüência, memória e testemunho são essenciais à ciência. Todavia, cada um deles está aberto à
crítica do cético. Ainda que possamos, mais ou menos, desfazer sua crítica, ficaremos, se formos
racionais, com uma confiança menos completa em nossas crenças originais do que antes tínhamos. Uma
vez mais, ficaremos menos convencidos à medida que nos aproximamos da exatidão.

Memória e testemunho nos levam à esfera da psicologia. Eu não os discutiria, a essa altura, além do
ponto em que se tornou claro que eles constituem legítimos problemas filosóficos a serem resolvidos.
Começarei pela memória.
Memória é uma palavra com vários significados. No momento refiro-me à recordação de ocorrências
passadas. Isto é tão notoriamente falível que todo o experimentador faz um registro do resultado de seu
experimento no instante mais imediato possível: julga que a inferência entre palavras escritas e
acontecimentos passados tem menor probabilidade de conter engano do que as crenças diretas que
constituem a memória. No entanto, uma fração de tempo, embora talvez inferior a poucos segundos,
decorrerá entre a observação e o registro, a menos que o registro seja tão fragmentário que a memória se
faça necessária para interpretá-lo. Assim, não escapamos à necessidade de confiar, até certo ponto, na
memória. Além disso, sem memória não pensaríamos em interpretar registros aplicados ao passado,
porque não saberíamos da existência de um passado. Deixando de lado os argumentos destinados a
provar a falibilidade da memória, há uma consideração embaraçosa que o cético poderá opor. Já que a recordação, como foi visto, não é possível – dirá ele ela prova, então, que a coisa lembrada ocorreu em outro tempo, porque o mundo pode ter emergido cinco minutos atrás, exatamente como ele foi, cheio de
atos de recordação que eram inteiramente ilusórios. Oponentes de Darwin, tais como o pai de Edmund
Gosse, levantaram argumento bem parecido contra a evolução. 0 mundo, disseram, foi criado em 4004
a.C., com fósseis introduzidos para tentar nossa fé. 0 mundo foi criado de repente, mas de tal maneira
como se fruto de longa evolução. Não há impossibilidade lógica a esta opinião. E, igualmente, não há
impossibilidade lógica à opinião segundo a qual o mundo foi criado cinco minutos atrás, cheio de
memórias e registros. Talvez pareça uma hipótese improvável, mas não refutável logicamente.
Além desse argumento, que seria considerado fantástico, há motivos de sobra para a relativa
desconfiança na memória. É óbvio que a confirmação direta de uma crença sobre uma ocorrência passada
não é possível, porque não temos acesso ao passado. Podemos encontrar confirmação de uma espécie
indireta nas revelações de terceiros nos arquivos contemporâneos. Estes, conforme vimos, envolvem
certo grau de memória, mas talvez envolvam muito pouco; por exemplo, quando o relato, em primeira
mão, de uma conversa ou discurso foi feito na ocasião. Mesmo assim, não escapamos inteiramente à
necessidade de estender a memória a um espaço mais longo de tempo. Suponhamos uma conversa de
todo imaginária, com algum propósito criminoso; dependeríamos, então, das memórias de testemunhas, a
fim de estabelecer seu caráter fictício num tribunal. E a memória que abrange longo período de tempo
está muito propensa a erro, segundo demonstrado pelos equívocos invariavelmente descobertos em
autobiografias. Quem reler cartas que escreveu muitos anos atrás verificará a maneira coma sua memória
falsificou acontecimentos pretéritos. Por estes motivos, o fato de não podermos nos libertar da
dependência da memória para construir o conhecimento é, prima facie, uma razão para considerar o que
chamamos de conhecimento como algo incerto. 0 tema genérico da memória será considerado mais
cuidadosamente em capítulos subseqüentes.

0 testemunho levanta problemas ainda mais embaraçosos, principalmente por ele participar da formação
de nosso conhecimento de física, e, inversamente, a física ser convocada a estabelecer a veracidade dele.
Além disso, o testemunho denuncia todos os problemas ligados à relação do espírito com a matéria,
Alguns filósofos eminentes, como Leibniz, construíram sistemas segundo os quais não haveria
testemunho, e no entanto aceitaram como verdadeiras muitas coisas que não poderiam ser conhecidas
sem ele. Não creio que a filosofia tenha feito justiça a este problema, porém umas poucas palavras
bastarão, segundo penso, para mostrar sua gravidade.
Para nossos objetivos, podemos definir por testemunho os ruídos que se ouvem, ou formas que se vêem,
análogos aos que faríamos se desejássemos transmitir uma afirmação, e que o ouvinte ou observador
acredita serem causados pelo desejo de outra pessoa de transmitir uma afirmação. Vamos a um exemplo
concreto : pergunto 0 caminho a um policial e ele diz : "Quarta à direita, terceira à esquerda." Melhor
dizendo, eu ouço esses sons, e talvez veja o que interpreto como o movimento de seus lábios. Concluo
que ele tem uma inteligência mais ou menos igual à minha, e que emitiu aqueles sons com a mesma
intenção que eu os teria emitido, isto é, para dar uma informação. Na vida ordinária, isso não constitui,
em qualquer sentido adequado, uma interferência; é uma crença que assoma em nós na ocasião
apropriada. Mas, se desafiados, temos de substituir a inferência pela crença espontânea, e quanto mais
examinada, mais a inferência se mostra incerta.
A inferência a ser feita tem duas etapas, uma física e uma psicológica. A inferência física é do gênero
que consideramos anteriormente, no qual passamos de uma sensação para uma ocorrência física.
Ouvimos ruídos e pensamos que eles procedem do corpo do policial. Vemos formas movendo-se, e as interpretamos como sendo os movimentos físicos de seus lábios. Esta inferência, como já vimos, é em
parte justificada pelo testemunho; contudo, verificamos agora que ela terá de ser feita antes que tenhamos
razões para crer na existência de algo como 0 testemunho. E essa inferência, às vezes, está errada.
Loucos ouvem vozes que ninguém mais escuta; em vez de criar-lhes uma audição anormalmente aguda,
nós os prendemos em asilos. Mas se nós mesmos, ocasionalmente, ouvimos frases que não procedem de
um corpo, por que não se daria, então, o mesmo caso? Talvez nossa imaginação tenha conjurado todas as
coisas que pensamos ouvir dos outros. Isto, porém, é parte do problema geral de inferir objetos físicos de
sensações, o qual, difícil como pareça, não constitui a parte mais difícil dos enigmas lógicos relativos ao
testemunho. A mais difícil ,é a inferência do corpo do policial para sua mente. Não pretendo A insultar
os policiais; diria o mesmo dos políticos, e até dos filósofos.

A inferência da mente do policial certamente pode estar errada. Está claro que um fabricante de objetos
de cera seria capaz de fazer um boneco quase idêntico a um policial de carne e osso, e dentro pôr um
gramofone que o habilitaria, periodicamente, a informar os visitantes de uma feira onde monta guarda
sobre o caminho até a seção mais interessante. 0s visitantes teriam a mesma evidência de seu estar vivo
que encontrariam diante de outros policiais. Descartes acreditava que os animais não têm espírito, não
passando de complicados autômatos. Os materialistas do século XVIII estenderam esta doutrina aos
homens. Mas não estou preocupado agora com o materialismo; meu problema é bem diferente. Até um
materialista deve admitir que, quando fala, pretende transmitir alguma coisa, isto é, usa palavras como
signos, não como simples ruídos. Talvez seja difícil decidir exatamente o que está contido nesta
declaração, mas é claro que ela significa algo, e que isso constitui as observações de uma pessoa. A
questão é : estamos certos da realidade das observações que ouvimos, bem como das que fazemos? Ou as
observações que ouvimos talvez não passem de outros tantos ruídos, meros distúrbios do ar, sem
significação? 0 principal argumento contra isto é a analogia, : as observações que ouvimos são tão iguais
às que fazemos que julgamos terem elas causas similares. Mas embora não possamos prescindir da
analogia como forma de inferência, ela não é, de maneira alguma, demonstrativa, e não raramente nos
extravia. Mais uma vez, portanto, ficamos com uma razão prima facie de incerteza e dúvida.

A questão sobre o que queremos exprimir quando falamos me leva a outro problema, o da introspecção.
Muitos filósofos sustentam que a introspecção tornou o conhecimento mais indubitável; outros afirmam
não existir o que se chama introspecção. Descartes, depois de tentar duvidar de tudo, chegou a esta
conclusão : "Penso, logo existo", como base para o conhecimento restante. 0 behaviourista Dr. John B,
Watson diz, ao contrário, que não pensamos, mas apenas falamos. Dr. Watson, na vida real, dá tantas
provas de pensar como qualquer outro; portanto, se ele não está convencido que pensa, estamos todos em
maus lençóis. De qualquer modo, a mera existência de uma opinião como esta, da parte de um filósofo
competente deve bastar para mostrar que a introspecção não é tão certa quanto alguns pensam.

Examinemos, porém, a questão um pouco mais de perto.
A diferença entre introspecção e o que chamamos percepção de objetos externos parece-me ligada, não
com o que é fundamental em nosso conhecimento, mas com o que é inferido. Pensamos, de uma feita,
estar vendo uma cadeira; de outra feita, pensamos acerca de filosofia. Ao primeiro caso, chamamos
percepção de um objeto externo; ao segundo, chamamos introspecção. Nesse ponto já encontramos
motivo para duvidar da percepção externa, no sentido vigoroso em que o senso comum a admite.

Examinarei mais adiante o que há de indubitável e de primitivo na percepção; por enquanto, anteciparei
minhas conclusões dizendo que o indubitável quando se "vê uma cadeira" é a ocorrência de um certo
esquema de cores. Mas essa ocorrência, segundo verificamos, está vinculada tanto a mim quanto à
cadeira; ninguém, a não ser eu mesmo, pode ver exatamente o modelo que vejo. Existe, portanto, algo de
subjetivo e particular no que entendemos por percepção externa, mas isto é disfarçado pelas precárias
extensões no mundo físico. Penso que a introspecção, ao contrário, envolve extensões precárias no
mundo mental: despojada dessas extensões, ela não difere muito da percepção externa despojada de seus
desdobramentos. Para esclarecer melhor, tentarei mostrar o que sabemos estar ocorrendo quando,
conforme foi dito, pensamos em filosofia.

Suponha que, em conseqüência da introspecção, você chega a uma crença expressa em palavras : "Agora
acredito que o espírito é diferente da matéria." 0 que você sabe, afora as inferências, nesse caso? Primeiro
de tudo, deve eliminar a palavra "Eu" : a pessoa que acredita é uma inferência, não é parte do que você
pensa de imediato. Em segundo lugar, deve ter cuidado com a palavra "acredito". Não estou preocupado
com o que esta palavra significaria em lógica ou teoria do conhecimento; estou preocupado com o que
pode significar quando usada para descrever uma experiência direta. Em semelhante caso, parece que ela
só pode descrever um certo gênero de impressão. E quanto à declaração de que pensa alue acredita, ou
seja, "o espírito é diferente da matéria", é muito difícil dizer o que na verdade ocorre quando você pensa
acreditar nisso. Talvez sejam meras palavras, pronunciadas, visualizadas e ouvidas, ou imagens motoras.
Talvez sejam imagens do que as palavras "significam", mas, nesse caso, não seria absolutamente uma
representação exata do conteúdo lógico da declaração. Você pode ter a imagem de uma estátua de
Newton "viajando por estranhos mares só de pensamento", e outra imagem de uma pedra rolando pela
encosta, combinada com as palavras "como é diferente!" Ou poderá pensar na diferença entre preparar
uma conferência e comer seu jantar. Somente quando se chega a exprimir o pensamento em palavras é
que ocorre a aproximação com a exatidão lógica.
Na introspecção e também na percepção externa, tentamos exprimir o que sabemos em PALAVRAS.

Chegamos aqui, como na questão do testemunho, ao aspecto social do conhecimento. 0 objetivo das
palavras é dar ao pensamento o mesmo gênero de publicidade reclamado pelos objetos físicos.
Numerosas pessoas podem ouvir uma palavra falada ou ver uma palavra escrita, porque ambas são
ocorrências físicas. Se eu lhe digo "o espírito é diferente da matéria", haveria apenas leve semelhança
entre o pensamento que tento exprimir e o pensamento despertado em você, mas esses dois pensamentos
têm apenas isto em comum : poderem ser expressos pelas mesmas palavras. Igualmente, haverá grandes
diferenças entre o que você e eu vemos quando, por exemplo, olhamos a mesma cadeira; todavia, ambos
podem exprimir nossas percepções pelas mesmas palavras.
Um pensamento e uma, percepção não são, por conseguinte, muito diferentes em sua própria natureza. Se
a física está correta, eles divergem em suas correlações : quando vejo uma cadeira, outros têm percepções
mais ou menos idênticas, e acredita-se que estas percepções estão associadas às ondas de luz
provenientes da cadeira, enquanto que, quando eu formulo um pensamento, outros talvez não estejam
pensando em algo idêntico. Mas isso se aplica também a uma sensação de dor de dente, o que
normalmente não seria considerado um caso de introspecção. Em resumo, portanto, parece não haver
razão para considerarmos a introspecção um gênero diferente de conhecimento em relação à percepção
externa. Mas a questão voltará a ocupar-nos outra vez em etapa posterior deste livro.

Quanto à veracidade da introspecção, há novamente um completo paralelismo com o caso da percepção
externa. 0 dado verdadeiro, em cada caso, é impecável, mas as extensões que f azemos instintivamente
são questionáveis. Em vez de dizer "Acredito que o espírito ë diferente da matéria", você deveria dizer :
"Certas imagens se processam com uma certa relação mútua, acompanhadas de um certo sentimento."
Não existem palavras para descrever a verdadeira ocorrência em toda a sua particularidade; todas as
palavras, inclusive os substantivos adequados, são genéricas, com a possível exceção de "isto"
que é ambíguo. Quando você traduz a ocorrência em palavras, está fazendo generalizações e inferências,
da mesma forma que quando você diz "existe uma cadeira." Não há, em verdade, diferença vital entre os
dois casos. Em cada caso, é inexprimível o que viria a ser realmente um dado, e o que se pode pôr em
palavras envolve inferências que estariam erradas.

Quando digo que há "inferências" envolvidas, estou dizendo uma coisa não suficientemente precisa, a
menos que fosse cuidadosamente interpretada. Ao "ver uma cadeira", por exemplo, não apreendemos
logo um esquema colorido, para em seguida inferirmos uma cadeira: a crença na cadeira surge
espontaneamente ao vermos o esquema colorido. Mas esta crença tem causas não só no estímulo físico
presente, mas também, em parte, na experiência passada, e em parte nos reflexos. Nos animais, os
reflexos desempenham parte considerável; nos seres humanos, a experiência é mais importante. A
criança aprende devagar a correlacionar tato e visão, e a esperar que os outros vejam o que ela vê. Os
hábitos que, em conseqüência, não formamos tornam-se essenciais à nossa noção adulta de um objeto
igual a uma cadeira. A percepção de uma cadeira por intermédio da vista tem um estímulo físico que
afeta só diretamente a visão, mas que estima idéias de solidez e assim por diante, na experiência inicial.

A inferência poderia chamar-se "fisiológica". Uma inferência de tal natureza é prova de correlações
passadas, por exemplo, entre tato e visão, mas podem estar equivocadas neste caso. Pode-se, para citar
um exemplo, errar um reflexo num grande espelho para outra sala. Da mesma forma, cometemos em
sonhos erros de inferência fisiológica. Não podemos, por conseguinte, ter certeza a respeito de coisas
que, neste sentido, são inferidas, porque, ao tentarmos aceitar o maior número possível delas, estamos,
por outro lado, compelidos a rejeitar algumas devido á autoconsistência.

Chegamos um momento atrás ao que chamei "inferência fisiológica" como ingrediente essencial na
noção elo senso comum de um objeto físico. A inferência fisiológica, em sua forma mais simples,
significa isto : dado um estímulo S, para o qual, mediante um reflexo, reagimos por um movimento
corporal R, e um estímulo S’ como uma reação R’, se os dois estímulos são freqüentemente
experimentados em conjunto, S produzirá, com o tempo, R’.2 0 que vale dizer, o corpo agirá como se S’
estivesse presente. A inferência fisiológica é importante na teoria do conhecimento, e terei observações a
acrescentar mais adiante. Por enquanto, mencionei-a parcialmente para evitar que ela fosse confundida
com a inferência lógica, e também a fim de introduzir o problema da indução, sobre a qual devemos
dizer algumas palavras preliminares nesta fase de nossa exposição.

A indução propõe talvez o mais difícil problema em toda a teoria do conhecimento. Toda lei científica é
estabelecida por seu intermédio, e no entanto é difícil ver porque a julgaríamos um processo lógico
válido. A indução, em seu fundamento, consiste do seguinte argumento : já que A e B têm sido
encontrados juntos muitas vezes, e jamais separados, quando A for encontrado outra vez, B
provavelmente o será também. Isto ocorre, primeiro, como "inferência fisiológica", e como tal é
praticado por animais. Quando começamos a refletir, nós nos descobrimos a fazer induções no sentido
fisiológico; por exemplo, à espera de que o alimento que vemos possua um certo gosto. Com freqüência:
só nos damos conta dessa expectativa quando ela nos desaponta., isto é, se provamos sal julgando ser
açúcar. Ao abraçar a ciência, a humanidade tentou formular princípios lógicos justificadores desse
gênero de inferência. Discutirei tais tentativas em capítulos posteriores; agora, direi apenas que elas me
parecem assaz infrutíferas. Estou convencido de que a indução deve ter alguma validade, até certo grau,
mas o problema de mostrar como ou por que ela pode ser válida continua insolúvel. Enquanto isso não
for resolvido, o homem racional duvidará se o alimento o nutrirá, e se o Sol se erguerá amanhã. Não sou um homem racional nesse sentido, mas, neste momento, pretenderia ser. E mesmo que não possamos ser
completamente racionais, faríamos o possível, sem dúvida alguma, para sermos mais racionais do que
somos. Na pior das hipóteses seria uma aventura interessante ver até onde a razão nos conduzirá.
Nenhum dos problemas que levantamos são novos, bastam para indicar que nossas opiniões cotidianas
sobre o mundo e nossas relações com ele são insatisfatórias. Estivemos a indagar se conhecemos isto ou
aquilo, mas ainda não perguntamos o que é "conhecer".

Talvez descobríssemos ter idéias erradas a
respeito do conhecimento, e que nossas dificuldades crescem menos quando dispomos, neste particular,
de idéias mais corretas. Penso que deveríamos iniciar nossa jornada filosófica pela tentativa de
compreender o conhecimento como parte da relação do homem com sua ambiência, esquecendo, por
enquanto, as dúvidas fundamentais que estivemos a considerar. Talvez a ciência moderna nos capacite a
ver problemas filosóficos sob uma nova luz. Nessa esperança, vamos examinar a relação do homem com
o seu meio, com o intuito de chegar a uma visão cientifica do que constitui o conhecimento.
Notas

———————————————————————–
1 Não estou pensando, aqui, na física elementar a ser encontrada num compêndio escolar. Penso na
moderna física teórica, mais particularmente em relação à estrutura do átomo, sobre a qual terei outras
coisas a dizer em capítulos posteriores.
2 Por exemplo se você ouve um ruído agudo e vê, simultaneamente, uma luz brilhante, com o tempo o
ruído sem a luz contrairá, suas pupilas.
In Russell, B. (1977): Fundamentos de Filosofia, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 7-20.
Opdateret d. 9.2.2001Opdateret d. 9.2.2001
Dúvidas Filosóficas – Bertrand Russell

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Seyla Benhabib

Os membros e afiliados do Institut für Sozialforschung, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Friedrich Pollock e Walter Benjamin, desenvolveram sua teoria numa época em que o desencanto com a primeira experiência de socialismo na União Soviética e, em especial, as experiências do fascismo europeu e da destruição das comunidades judaicas da Europa haviam frustrado todas as esperanças de uma transformação revolucionária do capitalismo a partir de dentro.1 A teoria crítica viu-se confrontada com a tarefa de pensar o "radicalmente outro".

Em seu Prefácio de 1971 ao livro de Martin Jay, A imaginação dialética, Horkheimer escreveu: "O apelo a um mundo inteiramente outro [ein ganz Anderes] que não este teve, primordialmente, um impulso sociofilosófico. (…) A esperança de que o terror terrestre não detenha a última palavra é por certo um desejo não científico."2 Horkheimer traça aí uma distinção entre a verdade filosófica e a científica, e atribui à filosofia a tarefa de pensar "o inteiramente outro". Em resposta à discussão gerada no Zeitschrift für Sozialforschung pela publicação, em 1937, do ensaio de Horkheimer intitulado "Teoria tradicional e critica", Marcuse formulou essa questão de maneira ainda mais incisiva:

Quando a verdade não é realizável dentro da ordem social existente, ela simplesmente assume para esta o caráter de utopia. (…) Tal transcendência não depõe contra, mas a favor da verdade. O componente utópico na filosofia foi, durante muito tempo, o único fator progressista, como a constituição do melhor Estado, do prazer mais intenso, da perfeita felicidade, da paz eterna. (…) Na teoria crítica, a obstinação há de ser mantida como uma qualidade genuína do pensamento filosófico.3

Nenhuma dessas formulações capta adequadamente a mescla singular de reflexão filosófica e pesquisa social científica conhecida como "teoria crítica", que os membros da Escola de Frankfurt elaboraram na década de 1930.4 Aplicando o "materialismo histórico a ele mesmo" (Korsch), eles puderam analisar as condições históricas da possibilidade da economia política marxista e, desse modo, confrontaram-se com a tarefa de articular uma "teoria crítica da transição" do capitalismo liberal de mercado para uma nova formação social, que denominaram, não sem ambigüidade, de "capitalismo de Estado". Seus esforços alteraram o próprio sentido da crítica social marxista e da crítica das ideologias.

[…]

I. DA CRÍTICA DA ECONOMIA POLÍTICA À CRÍTICA DA RAZÃO INSTRUMENTAL

A evolução do programa de pesquisas do Institut für Sozialforschung pode ser dividida em três fases distintas: a fase do "materialismo interdisciplinar" de 1932-37, a abordagem da "teoria crítica" de 1937-40 e a "crítica da razão instrumental" do período de 1940 a 1945.5 Cada uma dessas mudanças ocorreu na esteira das experiências históricas desse período turbulento: as perspectivas do movimento da classe trabalhadora na República de Weimar, a avaliação da estrutura social da União Soviética e a análise do fascismo deram margem a alterações fundamentais na teoria. Esses acontecimentos levaram a teoria crítica a reformular a compreensão que tinha de si mesma: redefiniram-se as relações entre a teoria e a prática e entre os sujeitos e os destinatários da teoria, enquanto a interdependência entre a filosofia e as ciências, a teoria crítica e o marxismo, foi reconceituada.

O ensaio de 1937 sobre a "Teoria tradicional e crítica" foi escrito num período em que a derrota do movimento da classe trabalhadora alemã e de seus partidos pelo fascismo parecia completa, e em que o terror stalinista e os "expurgos" subseqüentes no aparelho de poder soviético haviam destruído todas as ilusões a respeito dessa primeira experiência de socialismo. Essas experiências refletiram-se numa reformulação da relação teoria/práxis, bem como numa redefinição fundamental dos destinatários da teoria.

Enquanto, no período precedente a 1937, a verdade era definida como "um aspecto da práxis correta",6 que mesmo assim tinha que ser distinguido do sucesso político imediato, na "Teoria tradicional e crítica" a relação entre a verdade teórica e a práxis política de grupos sociais específicos começou a parecer cada vez mais remota. Em 1934, Horkheimer ainda pudera escrever:

O valor de uma teoria é determinado por sua relação com as tarefas, que são empreendidas [in Angriff genommenl, em momentos históricos definidos, pelas forças sociais mais progressistas. E esse valor não tem validade imediata para toda a humanidade, mas, a princípio, apenas para o grupo interessado nessa tarefa. O fato de o pensamento, em muitos casos, haver-se realmente alienado das questões da humanidade sofredora justifica, entre outras coisas, a desconfiança em relação aos intelectuais. (…) Portanto, essa acusação contra a intelectualidade aparentemente descompromissada [unbedingte](…) é correta nessa medida, já que esse descompromisso [Beziehungslosigkeit] do pensar não significa liberdade de julgamento, mas uma falta de controle do pensamento com respeito a suas próprias motivações.7

Na "Teoria tradicional e crítica", em contraste, Horkheimer enfatiza, não a comunhão de objetivos, mas o possível conflito "entre os setores avançados da classe e os indivíduos que dizem a verdade a respeito dela, bem como o conflito entre os setores mais avançados, com seus teorizadores, e o restante da classe".8 A união das forças sociais que prometem a libertação é conflitiva. Em vez de uma aliança com as forças progressistas da sociedade, em relação a cujas tarefas o "valor" da teoria seria determinado, Horkheimer passou a enfatizar o valor da atitude crítica do pensador, cuja relação com essas forças sociais foi vista como sendo de conflito potencial e crítica agressiva.

Essa verdade evidencia-se claramente na pessoa do teorizador: ele exerce uma crítica agressiva contra os apologistas conscientes do status quo, mas também contra as tendências perturbadoras, conformistas ou utópicas em sua própria casa.9

Não há nenhuma convergência necessária entre a teoria da sociedade com um propósito emancipatório e a consciência empírica da classe ou grupo social que seria agente da transformação emancipatória.

Em "Filosofia e teoria crítica", redigido em resposta à discussão gerada pelo ensaio de Horkheimer, Marcuse expressou a situação existencial que isola o intelectual e o empurra "de volta para si mesmo":

Que acontece quando os progressos esboçados pela teoria não ocorrem, quando as forças que deveriam levar à transformação são repelidas e parecem derrotadas? A verdade da teoria é tão pouco contraditada por isso que, ao contrário, surge sob um novo prisma e esclarece novas facetas e partes de seu objeto. (…) A função cambiante da teoria, na nova situação, confere-lhe o caráter de "teoria crítica", num sentido mais contundente.10

Essa "função cambiante da teoria" assinala a crescente defasagem entre a verdade crítica do marxismo e a consciência empírica do proletariado, que, no entanto, a teoria continua a apontar como o agente objetivo da futura transformação da sociedade.

[…]

Horkheimer sustenta que a teoria crítica marxista da sociedade continuou a ser uma disciplina filosófica, mesmo ao se engajar na crítica da economia; ele nomeia os três aspectos que constituem o "momento filosófico" da crítica da economia política. Primeiro, a crítica da economia política mostra a "transformação dos conceitos que dominam a economia em seus opostos".11 Segundo, a crítica não é idêntica a seu objeto. A crítica da economia política não reifica a economia. Defende "o conceito materialista da sociedade livre e autônoma, preservando do idealismo a convicção de que os homens têm outras possibilidades que não abandonar-se ao status quo ou acumular poder e lucro".12 Terceiro, a crítica da economia política encara as tendências da sociedade como um todo e retrata "o movimento histórico do período que se aproxima do fim".13 Horkheimer chama a estes os "momentos filosóficos" da crítica da economia política, pois cada processo conceitual visa a mais do que compreender empiricamente as leis e estruturas dadas da sociedade, e julga e analisa aquilo que é à luz de um padrão normativo, a saber, a "realização do livre desenvolvimento dos indivíduos" através da constituição racional da sociedade. Para Horkheimer, é a crítica do dado, em nome de um padrão utópico-normativo, que constitui o legado da filosofia.

[…]

1. Com a afirmação de que a crítica da economia política mostra a "transformação dos conceitos que dominam a economia em seus apostos", Horkheimer chama a atenção para o seguinte aspecto do procedimento de Marx: partindo das definições aceitas das categorias usadas pela economia política, Marx mostra como estas se transformam em seus apostos. Ele não justapõe seus próprios padrões aos utilizados pela economia política, mas, através de uma exposição e aprofundamento internos dos resultados disponíveis da economia política, mostra que esses conceitos contradizem a si mesmos. Isso significa que, quando suas implicações lógicas são ponderadas até o fim, esses conceitos não conseguem explicar o modo de produção capitalista. As categorias da economia política são avaliadas em relação a seu próprio conteúdo, isto é, ao fenômeno que pretendem explicar, e se mostram inadequadas nesse aspecto. Essa faceta do método de Marx pode ser denominada de "critica categorial" imanente.

2. O propósito da critica desfetichizante é mostrar que a realidade social do capitalismo apresenta-se aos indivíduos sob uma forma necessariamente mistificada. A consciência política espontânea, tanto quanto o discurso da economia política clássica, parte do pressuposto de que a realidade social é uma esfera objetiva, regida por leis e semelhante à natureza. Nem as relações sociais nem as atividades humanas que dão origem a essa aparência de objetividade natural são levadas em conta. "O conceito materialista de uma sociedade livre e autônoma", enfatizado por Horkheimer,14 só é possível quando se pressupõe que os indivíduos são os sujeitos constituintes de seu mundo social. Em vez de "abandonar-se ao status quo", eles podem reapropriar-se dessa realidade social e moldá-la de maneira a fazê-la corresponder aos potenciais humanos. A "convicção idealista de que os homens têm essa possibilidade"15 é demonstrada, para Horkheimer, pelo método da crítica desfetichizante de Marx. Nesse sentido, a crítica não é idêntica a seu campo objetal — a economia política. Analisando a constituição social desse campo objetal e sua transitoriedade, ela também traz à luz as tendências contraditórias em seu bojo que apontam para sua transcendência. A crítica da economia política visa a um modo de existência social livre da dominação da economia.

3. A crítica marxista do capitalismo expõe as contradições e disfuncionalidades internas do sistema para mostrar como e por que elas dão origem a demandas e lutas antagônicas, que não podem ser atendidas pelo presente. A teoria crítica diagnostica as crises sociais de modo a permitir e incentivar a futura transformação social. Como diz Horkheimer: "De importância central, aqui, é menos o que permanece inalterado do que o movimento histórico do período que se aproxima do fim."16 E acrescenta: "A economia é a causa primária da infelicidade, e a crítica teórica e prática deve voltar-se primordialmente para ela."17 Contudo, "a transformação histórica não deixa intactas as relações entre as esferas de cultura. (…) Por conseguinte, dados econômicos isolados não fornecem o padrão mediante o qual se deve julgar a comunidade [Gemeinschaft] humana".18

Embora Horkheimer e Marcuse, co-autor do epílogo da "Teoria tradicional e crítica", percebam "a economia como a causa primária da infelicidade", eles têm perfeita consciência de que a simples teoria das crises econômicas já não é suficiente para analisar as contradições do período entre as duas guerras mundiais; segundo, como a transformação histórica tem uma dimensão cultural, os fenômenos de crise não são experimentados meramente como disfuncionalidades econômicas, mas também como crises vividas.

[…]

As relações culturais e psicológicas já são destacadas como campos em que os indivíduos vivenciam as crises geradas pela economia. Apesar de causados pela economia, esses fenômenos não são de natureza econômica. Como mostram seus primeiros esforços para integrar os estudos psicanalíticos de Erich Fromm no programa de pesquisas do Instituto, Horkheimer e seus colaboradores têm plena consciência da necessidade de elaborar uma nova teoria sociocientífica da crise para lidar com os eventos históricos com que se confrontam.19

Essa breve análise do ensaio de Horkheimer de 1937 e do epílogo de "Teoria tradicional e crítica", redigido em co-autoria com Marcuse, revela a tensão não resolvida dessas formulações: de um lado, reconhece-se não apenas que não há convergência entre o ponto de vista do teórico e o dos movimentos da classe trabalhadora, mas também que, na verdade, há um hiato cada vez maior. Embora a teoria crítica denomine alguns setores da classe trabalhadora de seus "destinatários", estes são cada vez menos considerados como um grupo social empírico; com crescente freqüência, todos os indivíduos que compartilham um "senso crítico" são apontados como destinatários da teoria. Por Outro lado, Horkheimer agarra-se firmemente à critica da economia política como modelo de pesquisa e insiste nas influências emancipatórias inerentes a esse tipo de crítica.

[…]

O precário equilíbrio brilhantemente sustentado por Horkheimer em seu ensaio "Teoria tradicional e crítica" foi perturbado pelos acontecimentos históricos. Em vista das realidades da Segunda Guerra Mundial, todo o modelo marxista da crítica da economia política foi questionado. A passagem do modelo da "teoria crítica" para a "crítica da razão instrumental" ocorreu quando essa clivagem crescente entre a teoria e a prática, entre os temas e os destinatários potenciais da teoria, levou a um questionamento fundamental da própria crítica da economia política. A transformação da natureza do capitalismo liberal entre as duas guerras mundiais e as conseqüências disso para a crítica marxista da economia política foram desenvolvidas por Friedrich Pollock num artigo publicado no último número da publicação do Instituto, agora lançada como Estudos de Filosofia e Ciência Social.

Em "Capitalismo de Estado: suas possibilidades e limitações", Pollock descreve as transformações na estrutura da economia política ocorridas nas sociedades ocidentais desde o término da Segunda Guerra Mundial como "processos transicionais que transformaram o capitalismo privado em capitalismo estatal".20 Pollock acrescenta:

A aproximação mais estreita da forma totalitária deste último foi feita na Alemanha nacional-socialista. Teoricamente, a forma totalitária do capitalismo de Estado não é o único resultado possível da atual forma de transformação. É mais fácil, porém, construir um modelo para ela do que para a forma democrática de capitalismo estatal, para a qual nossa experiência nos fornece poucos indícios.21

O termo "capitalismo de Estado" indica que essa formação é "a sucessora do capitalismo privado, que o Estado assume importantes funções do capitalista privado, que os interesses voltados para o lucro continuam a desempenhar um papel expressivo, e que ela não é o socialismo".22

O capitalismo de Estado transforma radicalmente as funções do mercado. Este já não atua como coordenador da produção e da distribuição. Essa função passa a ser assumida por um sistema de controles diretos. "A liberdade de comércio, iniciativa e trabalho fica a tal ponto sujeita à interferência governamental que é praticamente abolida. Juntamente com o mercado autônomo, as chamadas leis econômicas desaparecem."23 Se o livre comércio, a livre iniciativa e a liberdade de vender a própria mão-de-obra — em suma, o mercado de trocas — vão-se transformando em coisa do passado, a crítica da ordem social e política emergente já não pode assumir a forma de uma crítica da economia política. Primeiro, a estrutura institucional dessa nova ordem social não mais pode ser definida em relação às leis do mercado e à administração impessoal da norma legal pelo Estado. A crescente estatização da sociedade e as novas prerrogativas do Estado criam estruturas institucionais cuja importância sociológica requer novas categorias de análise, além das da economia política.24 Segundo, se, juntamente com o "mercado autônomo", as chamadas leis econômicas também desaparecem, a dinâmica e os potenciais de crise da nova ordem social não podem ser apresentados como contradições imanentes apenas ao funcionamento da economia.25 No capitalismo de Estado, as crises econômicas são suspensas ou transformadas. Terceiro, se a liberdade de troca no mercado materializou, em certo momento, os ideais normativos da sociedade burguesa liberal — individualismo, liberdade e igualdade —, com o desaparecimento do mercado por trás de um sistema de controles diretos, os ideais normativos do liberalismo também desaparecem. A crítica da economia política, por si só, já não pode dar acesso à estrutura institucional, às ideologias normativas e aos potenciais de crise da nova ordem social.

A crítica marxista da economia política foi, ao mesmo tempo, uma crítica da formação social capitalista como um todo. Na fase de capitalismo liberal, era possível apresentar uma crítica dessa formação social através da crítica da economia política, por duas razões: primeiro, de acordo com Marx, as relações sociais de produção definiam a espinha dorsal institucional do capitalismo liberal, ao legitimarem um certo padrão de distribuição de riqueza, poder e autoridade na sociedade. No capitalismo, não só a economia era "desinserida" dos limites do campo social e político, como essa "economia desinserida" proporcionava, por sua vez, o mecanismo de redistribuição do poder e privilégio sociais. Segundo, as relações de troca no mercado capitalista davam legitimação normativa a essa sociedade, na medida em que os diferenciais resultantes de poder e privilégio sociais eram vistos como conseqüências das atividades de indivíduos que negociavam livremente. O "mercado autônomo" incorporava os ideais de liberdade, consentimento e individualismo que deram legitimação a essa ordem social. "Com o desaparecimento do mercado autônomo", como sugerido por Pollock, a crítica da economia política já não pode servir de base para uma crítica da nova formação social.

Dito de outra maneira, uma teoria social crítica do capitalismo de Estado não pode ser uma crítica da economia política do capitalismo de Estado, por duas razões: com o desaparecimento do mercado autônomo num sistema de controles estatais diretos, a distribuição social de riqueza, poder e autoridade torna-se "politizada". Essa distribuição já não é uma conseqüência das leis de mercado, mas das diretrizes políticas. Para analisar a estrutura social do capitalismo de Estado, não se necessita de uma economia política, mas de uma sociologia política. Com a "politização" do mercado antes autônomo, os ideais normativos e as bases ideológicas do capitalismo liberal também se transformam. As formas de legitimação, no capitalismo de Estado, precisam ser reanalisadas: com o declínio do mercado autônomo, a "legalidade" também declina; o liberalismo é transformado em autoritarismo político e, eventualmente, em totalitarismo.26

O núcleo do que veio a ser conhecido como "teoria social crítica da Escola de Frankfurt" no mundo de língua inglesa, desde o final da década de 1960, é essa análise da transformação do capitalismo liberal do século XIX em democracias de massa, de um lado, e formações totalitárias do tipo nacional-socialista, de outro. Entre 1939 e 1947, os membros da Escola de Frankfurt dedicaram-se a analisar as conseqüências econômicas, sociais, políticas, psicológicas e filosóficas dessa mudança. Enquanto o trabalho de Pollock concentrou-se na economia política, Franz Neumann27 e Otto Kirchheimer28 concentraram-se na sociologia política e na teoria política; Horkheimer, Adorno e Marcuse concentraram-se na elaboração das conseqüências sociológicas, psicológicas e filosóficas dessa transformação.29

[…]

Embora, nesse período, haja diferenças entre Marcuse, de um lado, e Horkheimer e Adorno, de outro, no tocante à definição político-econômica apropriada para o nacional-socialismo,30 os dados seguintes descrevem o modelo sociológico implícito utilizado por todos os três:

• o capitalismo liberal e a livre competição de mercado estão correlacionados com o Estado liberal, a família patriarcal burguesa e o tipo de personalidade rebelde, ou superego forte;

• o capitalismo de Estado (Adorno e Horkheimer) ou o capitalismo monopolista (Marcuse) correlacionam-se com o Estado fascista, a família autoritária e o tipo de personalidade autoritário;

• ou ainda, os mesmos fenômenos econômicos estão correlacionados com as democracias de massa, o desaparecimento da família burguesa, o tipo de personalidade submisso e a "automatização" do superego.

No contexto desse modelo sociológico, que estabelece relações funcionais entre o nível de organização das forças produtivas, a estrutura institucional da sociedade e as formações da personalidade, os conceitos de "racionalização" e "razão instrumental" são usados para descrever os princípios organizacionais da formação social, as orientações de valor da personalidade e as estruturas de sentido da cultura.

Por "racionalização social", Adorno, Horkheimer e Marcuse referem-se aos seguintes fenômenos: o aparelho de dominação administrativa e política estende-se a todas as esferas da vida social. Essa extensão da dominação é realizada através das técnicas organizacionais, cada vez mais eficientes e previsíveis, desenvolvidas por instituições como a fábrica, o exército, a burocracia, as escolas e a indústria da cultura. A eficiência e previsibilidade dessas novas técnicas organizacionais são possibilitadas pela aplicação da ciência e da tecnologia, não apenas à dominação de natureza externa, mas também ao controle das relações inter-pessoais e à manipulação de natureza interna. Esse aparelho de controle, científica e tecnologicamente instrumentado, funciona pela fragmentação dos processos de trabalho e produção em unidades homogêneas simples; essa fragmentação é acompanhada de uma atomização social dentro e fora da unidade organizacional. Nas organizações, a cooperação dos indivíduos fica sujeita às normas e regulamentos do aparelho; fora da unidade organizacional, a destruição da função econômica, educacional e psicológica da família deixa o indivíduo entregue às forças impessoais da sociedade de massas. O indivíduo passa então a ter que se adaptar ao aparelho para conseguir sobreviver.

O fato de as categorias de "racionalização" e "razão instrumental" serem ampliadas de forma dúbia, para se referirem a processos sociais, à dinâmica da formação da personalidade e a estruturas de sentido culturais, já indica que Marcuse, Adorno e Horkheimer superpõem os dois processos de racionalização, o societário e o cultural, que Max Weber havia procurado diferenciar.31 Essa fusão por parte deles acarreta um grande problema: embora aceitem o diagnóstico weberiano da dinâmica da racionalização social no Ocidente, eles criticam esse processo do ponto de vista de um modelo não instrumental da razão. Mas essa razão não instrumental já não pode ser imanentemente ancorada na realidade e assume um caráter cada vez mais utópico. Com esse passo, dá-se uma mudança fundamental no próprio conceito de "crítica". Esse modelo teórico, conhecido como "crítica da razão instrumental", leva a uma alteração radical dos métodos da crítica imanente e desfetichizante, enquanto a terceira função de uma teoria crítica — a saber, o diagnóstico da crise — desaparece.

II. A CRÍTICA DA RAZÃO INSTRUMENTAL E SUAS APORIAS

O texto em que esse novo paradigma da teoria crítica é mais explicitamente desenvolvido, e que contém in nuce boa parte da postura teórica da Escola de Frankfurt depois da Segunda Guerra Mundial, é Dialética do Esclarecimento. Trata-se de um texto de difícil apreensão:32 uma parcela substancial dele foi escrita a partir de notas tomadas por Gretel Adorno durante debates entre Adorno e Horkheimer. Concluído em 1944, ele foi publicado em Amsterdam três anos depois e relançado na Alemanha em 1969. Mais de metade do texto consiste numa exposição do conceito de Esclarecimento, com duas dissertações em apêndice, uma da autoria de Adorno, sobre a Odisséia, e outra redigida por Horkheimer, sobre Esclarecimento e moral.33

[…]

Em Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer afirmam que a promessa iluminista de livrar o homem da tutela a que ele mesmo se expõe não pode ser cumprida através da razão, que é um mero instrumento da autopreservação: "A dominação mundial da natureza volta-se contra o próprio sujeito pensante; nada resta dele senão esse ‘eu penso’, eternamente idêntico a si mesmo, que deve acompanhar todas as minhas representações."34 Para fundamentar essa tese, eles investigam a arqueologia psíquica do eu. A história de Odisseu lhes revela a nódoa obscura na constituição da subjetividade ocidental: o medo que o eu tem do "outro" — que eles identificam com a natureza — foi superado, no decorrer da civilização, pela dominação do outro. Mas, como o outro não é completamente estranho, e o eu como natureza também é outro em relação a si mesmo, a dominação da natureza só pode significar a autodominação. O eu homérico, que distingue entre as forças obscuras da natureza e a civilização, expressa o medo original da humanidade de ser absorvida pela alteridade. O mito, narrando o modo como o herói constitui sua identidade pela repressão da variabilidade da natureza, também expressa o avesso dessa história. A humanidade paga pela superação do medo do outro com a internalização da vítima. Odisseu só escapa ao apelo das sereias submetendo-se voluntariamente a seu torturante encanto. O ato de sacrifício encena repetidamente a identificação dos seres humanos com as forças obscuras da natureza, a fim de lhes permitir purificar a natureza dentro da própria humanidade.35 Mas, como mostra a regressão da cultura para o barbarismo promovida pelo nacional-socialismo, a astúcia [List] de Odisseu, origem da ratio ocidental, não conseguiu superar o temor original que a humanidade tem do outro. O judeu é o outro, o estranho, aquele que é a um tempo humano e subumano. Enquanto a astúcia de Odisseu consiste na tentativa de aplacar a alteridade através de um ato mimético, tornando-se igual a ela — Odisseu oferece sangue humano aos ciclopes para que o bebam, dorme com Circe e escuta as sereias —, o fascismo, através da projeção, torna o outro idêntico a ele mesmo:

Se a mimese torna-se igual ao mundo circundante, a falsa projeção torna o mundo circundante igual a ela mesma. Se, para a primeira, o exterior é o modelo do qual o interior tem que se aproximar [sich anschmiegen], se para ela o estranho torna-se conhecido, a segunda transforma prontamente o tenso interior em exterioridade e carimba até o familiar como inimigo.36

A razão ocidental, que se origina no ato mimético de dominar a alteridade igualando-se a ela, culmina num ato de projeção que, mediante a tecnologia da morte, consegue fazer a alteridade desaparecer. "A ‘razão’ que suprime a mimese não é simplesmente seu oposto; ela mesma é mimese — até a morte."37

Numa das notas anexadas ao texto, "O interesse pelo corpo", Adorno e Horkheimer escrevem:

Por baixo da história conhecida da Europa há uma Outra história subterrânea. Ela consiste no destino dos instintos e paixões humanos, reprimidos e deslocados pela civilização. Da perspectiva do presente fascista, em que aquilo que estava escondido emergiu à luz, a história manifesta aparece juntamente com seu lado mais tenebroso, omitido tanto pelas lendas do Estado nacional quanto por suas criticas progressistas.38

Esse interesse na história subterrânea da civilização ocidental é, sem dúvida, o princípio norteador metodológico da história subterrânea da razão ocidental, que o corpo do texto desvenda. A história de Odisseu e a do Holocausto, o mito que é o Esclarecimento e o Esclarecimento que se transforma em mitologia são marcos da história ocidental: a gênese da civilização e sua transformação no barbarismo. Mas o implacável pessimismo de Adorno e Horkheimer, sua simpatia declarada pelos "autores soturnos da burguesia" (Hobbes, Maquiavel e Mandeville) e por seus críticos niilistas (Nietzsche e Sade), não podem ser explicados apenas pelo caráter tenebroso da história humana naquele momento. Como eles mesmos reconhecem em seu Prefácio de 1969: "Já não aderimos a tudo o que foi dito neste livro. Isso seria incompatível com uma teoria que confere à verdade um núcleo temporal, em vez de justapô-la como imutável à movimentação da história."39 Mas eles insistem em que a transformação do Esclarecimento em positivismo, "na mitologia do que são os fatos", bem como a rematada identificação do intelecto com uma hostilidade ao espírito, continuam a preponderar maciçamente. E concluem dizendo que "o desenvolvimento rumo à integração total, reconhecido neste livro, foi interrompido, mas não terminado".40 O conceito de "integração total" já faz eco ao diagnóstico adorniano da "sociedade inteiramente governada" e à tese da "unidimensionalidade", de Marcuse.41 A crítica do Esclarecimento torna-se tão totalizante quanto a falsa totalidade que procura criticar.

Essa "crítica totalizante" do Esclarecimento desencadeou uma ruptura radical com a concepção de teoria crítica de 1937. A história da relação da humanidade com a natureza não revela uma dinâmica emancipatória, como Marx gostaria que acreditássemos. O desenvolvimento das forças produtivas, o domínio crescente da humanidade sobre a natureza, não é acompanhado por uma diminuição da dominação interpessoal; ao contrário, quanto mais racionalizada é a dominação da natureza, mais sofisticada e difícil de reconhecer torna-se a dominação social. A atividade de trabalho, ato em que o homem usa a natureza para seus fins, agindo como uma força da natureza (Marx), é de fato um exemplo da astúcia humana. Como revela a interpretação de Odisseu, no entanto, esse esforço de dominar a natureza, tornando-se semelhante a ela, é pago com a internalização do sacrifico. O trabalho é, efetivamente, a sublimação do desejo; mas o ato de objetivização em que o desejo se transforma num produto não constitui um ato de auto-efetivação, mas um ato de medo que leva ao controle da natureza dentro de si mesmo. A objetivização não é a auto-efetivação, mas a abnegação disfarçada de auto-afirmação.

Consideradas em conjunto, essas duas teses — o trabalho como dominação da natureza e como abnegação — significam que a visão marxista da humanização da espécie através do trabalho social deve ser rejeitada. O trabalho social, que para Horkheimer, já em 1937, continha um fator emancipatório e um núcleo de racionalidade, não mais é o locus de nenhum dos dois. Tanto a emancipação quanto a razão têm que ser buscadas em outra instância. O diagnóstico totalizante da Dialética do Esclarecimento não nos diz onde. Essa transformação da atividade do trabalho, de atividade de auto-efetivação em atividade de sublimação e repressão, cria um vazio na lógica da teoria critica. Não fica claro que atividades, se é que elas existem, contribuem para a humanização da espécie no curso de sua evolução, e além disso, em nome de que atividades, se é que elas existem, fala a própria crítica.

[…]

Segundo Adorno e Horkheimer, a tarefa da cultura é estabelecer a identidade do eu perante a alteridade, e a razão é o instrumento pelo qual isso se realiza.42 A razão, ratio, é a astúcia do eu nomeador. A linguagem separa o objeto e seu conceito, o eu e seu outro, o ego e o mundo. A linguagem domina a exterioridade — não, como o trabalho, colocando-a a serviço dos seres humanos, mas reduzindo-a a um substrato idêntico. Enquanto, na magia, o nome e a coisa nomeada mantêm uma relação de "parentesco, não de intenção",43 o conceito que substitui o símbolo mágico, no decurso da cultura ocidental, reduz "a afinidade múltipla do ser" à relação entre o sujeito doador de sentido e o objeto sem sentido.44 O desencanto do mundo, a perda da magia, não é, primordialmente, uma conseqüência da transição da pré-modernidade para a modernidade. A transição do símbolo para o conceito já significa um desencanto. A ratio abstrai, procura compreender através de conceitos e nomes. A abstração, que só é capaz de apreender o concreto na medida em que consegue reduzi-lo à identidade, também liquida a alteridade do outro. Com uma retórica implacável, Adorno e Horkheimer rastreiam a irracionalidade e o racionalismo cultural até suas origens, isto é, até a lógica identificatória que é a estrutura profunda da razão ocidental:45

Quando se anuncia que a árvore já não é simplesmente ela mesma, mas uma testemunha de outra, a sede do mana, a linguagem expressa a contradição que há em algo ser ele mesmo e, simultaneamente, outro além dele mesmo, idêntico e inidêntico. (…) O conceito, que se gostaria de definir como a unidade caracterizadora do que é englobado por ele, foi, desde o início, muito mais produto do pensamento dialético, pelo qual cada um é sempre o que é, posto que se transforma no que não é.46

Aqui, a estrutura aporética de uma teoria crítica da sociedade, tal como concebida por Adorno e Horkheimer, torna-se evidente. Se a promessa do Esclarecimento e da racionalização cultural revela apenas a culminância da lógica identificatória, constitutiva da razão, a teoria da dialética do Esclarecimento, feita com os instrumentos dessa mesmíssima razão, perpetua a própria estrutura de dominação que condena. A crítica ao Esclarecimento é afligida pelo mesmo castigo que o próprio Esclarecimento. Essa aporia, reconhecida por Adorno e Horkheimer eles mesmos,47 não é resolvida, mas redimida pela esperança de que a crítica do Esclarecimento possa, ainda assim, evocar o princípio utópico da lógica não identificatória, que ela tem que negar tão logo o articule discursivamente. O fim do Esclarecimento, o fim da "pecaminosidade natural da humanidade", não pode ser afirmado discursivamente. Se o Esclarecimento é o auge da lógica identificatória, a superação do Esclarecimento só pode ser uma questão de restituir o direito de ser ao inidêntico, ao suprimido e ao dominado. Uma vez que até a própria linguagem é oprimida pela maldição do conceito, que suprime o outro no ato mesmo de nomeá-lo,48 podemos evocar o outro, mas não podemos nomeá-lo. Tal como o Deus da tradição judaica, que não deve ser nomeado mas evocado, a transcendência utópica da história da razão não pode ser nomeada, mas apenas reinvocada na memória do homem.

[…]

A conseqüência mais ampla do projeto denominado de "dialética do Esclarecimento" é a transformação do próprio conceito de crítica. A "dialética do Esclarecimento" também pretende ser uma crítica do Esclarecimento. Quando se afirma, entretanto, que a razão autônoma é apenas a razão instrumental a serviço da autopreservação, o projeto kantiano de crítica, no sentido de "auto-reflexão da razão sobre as condições de sua possibilidade", é radicalmente alterado. Como observam acertadamente Baumeister e Kulenkampff:

A filosofia racionalista clássica praticou a crítica às suposições dogmáticas e aos falsos conteúdos da razão sob a forma de uma reflexão sobre seu próprio conceito puro. Com isso, entretanto, o pensamento filosófico cegou-se para a verdadeira essência da razão e para a falha oculta no âmago de seus fundamentos. Decorre daí que a teoria crítica, que permanece fiel a essa pretensão da razão, não mais pode assumir a forma de reflexão transcendental e não pode depender das formas existentes de filosofia tradicional. A crítica só é possível de um ponto de vista que permita questionar os componentes do conceito dominante de razão, sobretudo o contraste universal fixo entre a razão e a natureza. O conceito crítico de razão não pode ser obtido da autopreservação da razão, mas apenas da dimensão mais profundamente arraigada de sua gênese a partir da natureza.49

A reflexão da razão sobre as condições de sua possibilidade significa, pois, desvendar a genealogia da razão, descobrindo a história subterrânea da relação entre razão e autopreservação, autonomia e dominação da natureza. Entretanto, como se supõe que a própria genealogia seja critica, e não um mero exercício de conhecimento histórico, a questão retorna: qual é o ponto de vista de uma teoria crítica que lhe permite empenhar-se numa reflexão genealógica sobre a razão, usando a mesmíssima razão cuja história patológica ela própria quer desvendar?50

A transformação da crítica da economia política em crítica da razão instrumental marca não apenas uma mudança no objeto da crítica, porém, o que é mais significativo, na lógica da crítica. Os três aspectos previamente descritos, de crítica imanente, crítica desfetichizante e crítica como diagnóstico da crise, são todos postos em questão. A crítica imanente transforma-se na dialética negativa, a crítica desfetichizante torna-se a crítica da cultura, e o diagnóstico da crise é convertido numa filosofia retrospectiva da história, com propósitos utópicos.

A crítica imanente como dialética negativa

Segundo Adorno, a tarefa da crítica imanente é transformar "os conceitos, que ela como que traz de fora, naquilo que o objeto, deixado por sua própria conta, procura ser, e confrontá-lo com o que ele é. Ela deve dissolver a rigidez do objeto, temporal e espacialmente fixo, num campo de tensão do possível e do real".51 Como Hegel já havia analisado na dialética da essência e da aparência, aquilo que é não é mera ilusão [Schein], mas a manifestação [Erscheinung] da essência.52 A aparência revela e oculta sua essência ao mesmo tempo. Se não ocultasse a essência, ela seria mera ilusão, e, se não a revelasse, não seria aparência. Inversamente, a essência não é um simples além. Incorpora-se no mundo através da aparência. Ela é "a realidade ainda inexistente daquilo que é". Dissolver a rigidez do objeto fixo num campo de tensão do possível e do real é compreender a unidade da essência e da aparência como efetividade. A essência define o campo das possibilidades daquilo que é. Quando a realidade da aparência é compreendida à luz da essência, isto é, no contexto de suas possibilidades latentes, a realidade transforma-se em efetividade. Ela deixa de, simplesmente, ser; torna-se a atualização de uma possibilidade, e sua efetividade consiste no fato de que ela sempre pode transformar uma possibilidade não realizada em realidade.53

Sem dúvida, a crítica imanente da economia política também visou a transformar os conceitos que a economia política trouxe de fora "naquilo que o objeto, deixado por sua própria conta, procura ser". Ao revelar como as categorias da economia política transformavam-se em seus opostos, Marx também estava dissolvendo o existente "num campo de tensão do possível e do real". Em termos hegelianos, a crítica imanente é sempre uma crítica do objeto, bem como do conceito do objeto. Apreender esse objeto como efetividade significa mostrar que é falso aquilo que o objeto é. Sua verdade é que sua facticidade dada é uma mera possibilidade, definida por um conjunto de outras possibilidades, que ele não é. Negar a facticidade do que é equivale a reconhecer que "das Bekannte überhaupt ist darum, weil es bekannt ist, nicht erkannt"— "o que é de conhecimento geral o é por ser notório, não conhecido".54 Isso implica que um modo de conhecer que hipostasia o que é não é um conhecimento verdadeiro. O verdadeiro conhecimento especulativo, o ponto de vista do conceito, está em apreender a unidade da aparência e da essência e em compreender que o real, por ser possível, é também necessário, e por ser necessário, é também uma possibilidade.

Adorno transforma a crítica imanente em dialética negativa, precisamente para minar a identidade especulativa entre conceito e objeto, essência e aparência, possibilidade e necessidade, postulada por Hegel.55 A dialética negativa é uma interminável transformação dos conceitos em seus opostos, daquilo que é no que poderia ser mas não é. Revelar o que poderia ser não significa postular que ele tem que ser. Muito pelo contrário, a dialética negativa empenha-se em mostrar que não há nenhum ponto final de reconciliação e de claro discernimento no caráter necessário do possível. A rigor, a tarefa de Adorno é mostrar a superfluidade daquilo que é; mostrar que o objeto desafia seu conceito e que o conceito está fadado ao fracasso em sua busca da essência. Adorno mina os próprios pressupostos conceituais da crítica imanente que pratica. A dialética negativa converte-se numa dialética da negatividade pura, da contestação perpétua do real. O discurso da negatividade rejeita precisamente o que Marx ainda era capaz de pressupor: que o discernimento da necessidade do que é também levaria a uma compreensão do que poderia ser, e que o que poderia ser era algo por que valia a pena lutar. A dialética negativa, em contraste, nega que haja uma lógica emancipatória que seja imanente ao real.56 A negatividade, a não-identidade e a desmistificação da paixão com que o pensamento luta pela identidade não garantem nenhum efeito emancipatório. Ou então, para usar as palavras de Adorno, elas garantem que essas conseqüências serão emancipatórias, justamente por se recusarem a garanti-las. Adorno rejeita a lógica da imanência, enquanto preserva a crítica imanente. Na medida em que o método da crítica imanente pressupunha um desenvolvimento lógico imanente em direção a uma crescente transparência ou adequação entre o conceito e a realidade, a crítica transformou-se em dialética, numa mitologia da inevitabilidade, guiada por uma crença na identidade entre o pensamento e o ser. Adorno insiste na mediação entre o pensamento e o ser, negando sua identidade:

A totalidade é uma categoria de mediação, e não de dominação e subjugação imediatas. (…) A totalidade social não leva uma vida própria, além e acima daquilo que ela une e do qual, por sua vez, se compõe. Ela se produz e se reproduz através de seus momentos individuais.57

A tarefa da dialética negativa é revelar a natureza mediada do imediato, sem por isso cair na ilusão de que todo imediato tem que ser mediado. Isso só ocorreria se a totalidade se tornasse totalitária, se todos os elementos de não-identidade, alteridade e individualidade fossem absorvidos no todo.

Com a transformação da economia liberal de mercado no capitalismo organizado, a base econômica do individualismo burguês também é destruída. O indivíduo que, por seus esforços e atividades, realizou sua liberdade e igualdade nas relações de troca no mercado, passa a ser um anacronismo histórico. A crítica normativa da ideologia burguesa já não pode ser efetuada como uma crítica da economia política. O desenvolvimento da sociedade burguesa destruiu seus próprios ideais. A crítica das ideologias já não pode justapor normas dadas à realidade; antes, tem que desmistificar uma realidade em vias de obliterar as normas que um dia forneceram sua própria base de legitimação. A crítica das normas deve ser conduzida como uma crítica da cultura, para desmistificar a cultura e revelar o potencial utópico latente que há nela.58

A crítica desfetichizante como crítica da cultura

Embora a análise do fetichismo da mercadoria por Marx continue a fornecer o modelo da crítica da cultura, esse paradigma passou por sérias revisões na obra de Adorno e Horkheimer. A metáfora em torno da qual se construiu a análise do fetichismo da mercadoria é a reificação do social e do histórico como o "natural". Uma vez que a troca de mercadorias oculta o processo de produção destas, e já que as leis do mercado escondem o fato de essas leis aparentes se constituírem por atividades e relações humanas concretas, o discurso desfetichizante justapõe a produção ao comércio, o valor de uso ao valor de troca, e a atividade constitutiva dos seres humanos às manifestações na cultura. O desaparecimento de uma esfera autônoma de relações de troca modifica a prioridade ontológica atribuída à produção por Marx. A esfera da produção não está para a esfera da circulação como a essência para a aparência. Com a crescente racionalização da esfera produtiva e a crescente integração da produção e do comércio, o capitalismo monopolista começa a evoluir para uma realidade social em que todos os contrastes desaparecem, e as alternativas ao presente tornam-se inconcebíveis. Horkheimer descreve essa transformação da realidade social, já em 1941, como "a dissolução semântica da linguagem num sistema de sinais".59 O indivíduo, segundo Horkheimer,

sem sonhos nem história, (…) está sempre atento e pronto, sempre almejando um objetivo prático imediato. (…) Toma a palavra falada apenas como um meio de informação, orientação e ordem.60

Com o declínio do ego e de sua razão reflexiva, as relações humanas tendem para um ponto em que o domínio da economia sobre todas as relações pessoais, o controle universal das mercadorias sobre a totalidade da vida, transforma-se numa nova e escancarada forma de comando e obediência.61

Essa totalização da dominação, a totalização de um sistema de sinais em que a linguagem humana desaparece, deixa de se manifestar como uma esfera de quase-naturalidade que nega sua própria historicidade. Em vez disso, o próprio contraste entre cultura e natureza, entre segunda natureza e natureza primária, começa a desaparecer.62 A totalização da dominação significa a crescente manipulação da própria natureza. O antagonismo entre a natureza e a cultura transforma-se então numa vingança da natureza contra a cultura. Enquanto Marx havia desmistificado a naturalização do histórico, os teóricos críticos procuram desmistificar a historicização do natural. O que o fascismo manipula é a revolta da natureza sufocada contra a totalidade da dominação, e é a revolta da natureza sufocada que a indústria de massas recircula em imagens de sexo, prazer e falsa felicidade. A repressão da natureza interna e externa elevou-se a proporções tão sem precedentes, que a revolta contra essa própria repressão torna-se objeto de uma nova exploração e manipulação. Nessas circunstâncias, o "fetichismo" das mercadorias não distorce a história, transformando-a em natureza, mas utiliza a revolta da natureza sufocada para mistificar a exploração social da natureza dentro e fora de nós. Na linguagem de Adorno, o valor de troca não mais esconde a produção de valores de uso; muito pelo contrário, as mercadorias passam a competir entre si para se apresentar no imediatismo dos valores de uso e satisfazer a nostalgia do trabalho feito com as próprias mãos, da natureza virgem, da simplicidade e do não-artificialismo. Enquanto, no capitalismo liberal, o valor de uso era portador do valor de troca, no capitalismo organizado o valor de troca só é comercializável na medida em que possa se apresentar como portador de um valor de uso não mediado, para o gozo de cujas qualidades "espontâneas" a indústria da propaganda nos seduz. A brutalização da natureza no fascismo, a exploração sedutora da natureza pelos meios de comunicação de massa e pela indústria da cultura, e a nostalgia do natural e do orgânico, expressas pela crítica conservadora da cultura, têm isto em comum: manipulam a revolta da natureza reprimida, convertendo-a em submissão, esquecimento e pseudofelicidade.63

O diagnóstico da crise como filosofia retrospectiva da história com um propósito utópico

Se o capitalismo organizado eliminou o mercado autônomo, se a irracionalidade dos capitais individuais em concorrência foi substituída por um sistema de controles estatais monopolistas, que acontece com as tendências e os potenciais de crise econômica nessas sociedades? Em seu artigo de 1941, Pollock já havia afirmado que a capacidade do sistema de administrar e controlar as crises era imprevisivelmente grande.64 No período do após-guerra, os teóricos críticos enfatizaram que o capitalismo organizado havia eliminado os potenciais de crise, sem eliminar as irracionalidades do sistema. As irracionalidades sistemáticas do capitalismo deixaram de se articular como crises sociais. Não apenas a economia, mas também as transformações da cultura são responsáveis por esse fenômeno.

Em Eros e civilização, Marcuse formulou da seguinte maneira a impossibilidade das crises sociais em condições de civilização industrial-tecnológica: as próprias condições objetivas que possibilitariam a superação da civilização industrial-tecnológica também impedem a emergência das condições subjetivas necessárias a essa transformação.65 O paradoxo da racionalização consiste em que as próprias condições que poderiam levar a uma reversão da perda de liberdade não podem ser percebidas pelos indivíduos que estão desencantados. Na civilização industrial-tecnológica, a verdadeira possibilidade de pôr fim à falta de liberdade é proporcionada pela transformação da ciência e da tecnologia em forças produtivas, e pela subseqüente eliminação da mão-de-obra imediata do processo de trabalho. O trabalho deixa de ser vivenciado pelo indivíduo como o penoso emprego da energia orgânica para realizar uma tarefa específica. O processo de trabalho torna-se impessoal e cada vez mais dependente da organização e coordenação do esforço humano coletivo. A importância decrescente da mão-de-obra imediata no processo de trabalho, já analisada por Marx nos Grundrisse, não resulta num declínio correspondente do controle sociocultural sobre o indivíduo.

Pelo contrário, a impessoalização e a racionalização das relações de autoridade trazem consigo uma transformação correspondente da dinâmica da formação individual da identidade.66 Com o declínio do papel do pai na família, a luta contra a autoridade perde seu foco: o eu não consegue atingir a individuação, pois, despojado de figuras pessoais contra as quais lutar, já não vivencia os processos altamente pessoais e idiossincráticos da formação individualizante da identidade. A agressão, que não pode ser descarregada na luta edipiana contra uma figura humana, é posteriormente internalizada e gera culpa.67

A conseqüência mais ampla do desaparecimento da personalidade autônoma é o enfraquecimento dos "laços vivos entre o indivíduo e sua cultura".68 A substância ética desaparece. O desaparecimento da substância ética na civilização industrial-tecnológica seca as fontes culturais de revolta grupal, até então sustentadas em nome das lembranças de rebeliões passadas. A perda da cultura como repositório da memória coletiva ameaça a própria dinâmica da civilização: revolta, repressão e nova revolta. Quando a cultura deixa de ser uma realidade viva, a lembrança das promessas não cumpridas e traídas, em nome das quais se conduzira a revolta dos reprimidos, deixa de ser uma possibilidade histórica do presente.

A transfiguração da moderna civilização industrial-tecnológica deve começar por um ato de Erinnerung [lembrança] que liberta os sentidos esquecidos, reprimidos e negados, bem como as esperanças e aspirações das revoltas passadas. Em vez de uma crítica à ontologia e à lógica da identidade ocidentais, Marcuse propõe-se reconstruir a dimensão utópica latente da ontologia ocidental. Ao revelar as polaridades de Logos e Eros, da interminável passagem do tempo e do desejo de transcender toda temporalidade, da infinitude ruim do existente [die Seienden] e da perfeição do ser [die Vollkommenheit des Seins], como sendo as estruturas duais em que se desdobra a ontologia ocidental, Marcuse sustenta a função redentora da memória.69

Mas essa memória redentora não pode ser reativada no continuum da história, justamente porque a história passa a se desdobrar de tal modo que nega seu próprio passado, sua própria história. A sociedade unidimensional criada pelo mundo industrial-tecnológico oblitera o horizonte ontológico em que se desenvolveu e no qual se desdobra. Isso significa que a teoria crítica da sociedade, que fala em nome da teoria redentora, está, ela mesma, fora do continuum histórico; num esforço para negar a dominação do tempo, ela apela para a lembrança do desejo de pôr fim a toda a temporalidade a partir de um ponto externo ao tempo.70 Revivendo as polaridades primordiais entre Eros e Logos, Narciso e Orfeu, Marcuse procura revelar o potencial revolucionário de uma sensualidade [Sinnlichkeit] emancipada. Narciso desponta como o mensageiro de um novo princípio ontológico.71 Para se transformar numa nova moralidade [Sittlichkeit], o potencial subversivo dessa nova sensualidade deve reimergir-se nos tecidos da história; mas, de acordo com a tese da unidimensionalidade, não pode haver portadores históricos coletivos desse processo.

Mas, se o potencial subversivo da memória redentora, evocada pela teoria, permanece fora do continuum histórico, não terá a teoria crítica reconhecido uma aporia fundamental, ou seja, as condições de sua própria impossibilidade? A teoria crítica social analisa uma sociedade que subsiste do ponto de vista da possível transformação de sua estrutura básica, e interpreta as necessidades e conflitos emergentes à luz dessa transformação antecipatória. Se é exatamente o continuum da história que a crítica tem que rejeitar, a visão da sociedade emancipada, que ela articula, transforma-se num mistério privilegiado, que não pode ser relacionado com a compreensão imanente das necessidades e conflitos que brotam de dentro do continuum do processo histórico. Ou a teoria critica deve rever a tese da unidimensionalidade, ou deve questionar sua própria possibilidade. Isso foi reconhecido por Claus Offe em 1968: a teoria crítica deve limitar a tese relativa a uma manipulação multiabrangente e admitir a presença de vazamentos no sistema de racionalidade repressiva, ou então deve renunciar à afirmação de ser capaz de explicar as condições de sua própria possibilidade.72

Essa crítica aplica-se não apenas à análise de Marcuse, mas também ao modelo teórico definido como "crítica da razão instrumental" em geral. Em se presumindo que a racionalização societária tenha eliminado as crises e as tendências ao conflito na estrutura social, e que a racionalização cultural tenha destruído o tipo de personalidade autônoma, a teoria crítica deixa de se deslocar no horizonte da perspectiva de transformação futura e tem que recuar para a postura retrospectiva da esperança e da rememoração do passado. A teoria crítica torna-se um monólogo retrospectivo do pensador crítico sobre a totalidade desse processo histórico, pois enxerga o presente vivenciado, não pela perspectiva da possível transformação futura, mas do ponto de vista do passado.

[…]

Pode-se interpretar esse resultado de duas maneiras. Primeiro, é possível afirmar que a crítica social converte-se mais uma vez em mera crítica, no sentido ridicularizado por Marx em seus primeiros trabalhos, e que a teoria crítica da sociedade deve justificar seus compromissos normativos explícitos. Segundo, pode-se argumentar que a teoria crítica não se transforma em mera crítica, pois continua a recorrer a normas e valores imanentes à autocompreensão das sociedades capitalistas avançadas, mas que o conteúdo das normas a que se recorre foi transformado.

De acordo com a primeira interpretação, a crítica torna-se mera crítica pelas seguintes razões: se as crises e os potenciais de conflito das sociedades capitalistas avançadas foram eliminados, se essa estrutura social destruiu as próprias normas de racionalidade, liberdade e igualdade a que a crítica da economia política podia implicitamente recorrer, se, além disso, as próprias fronteiras entre a história e a natureza, a cultura e a natureza não humana, tornaram-se irreconhecíveis, onde estão os padrões normativos para os quais a teoria crítica poderia apelar, e como se há de justificá-los? O teórico crítico tem que falar em nome de uma visão utópica do futuro a que só ele tem acesso, ou então desempenhar o papel de memória e consciência numa cultura que eliminou seu próprio passado. Nem essa visão utópica nem a rememoração retrospectiva baseiam-se em normas e valores decorrentes da autocompreensão dessa cultura e dessa estrutura social. O ponto de vista da crítica transcende o presente e justapõe ao existente o que deveria ser ou o que poderia ter sido, se não se houvesse traído o passado. A crítica em si, portanto, é uma modalidade de investigação criteriológica explícita. O comentário de Marx sobre a mera crítica pode então ser aplicado à postura da própria Escola de Frankfurt:

A reflexão do sujeito crítico, que acredita haver preservado para si uma vida realmente livre e o futuro histórico sob a forma de um apelo, permanece hipócrita perante todas as situações; assim, Marx, que já reconhecera esse privilégio como sendo o caso dos irmãos Bauer, falou ironicamente da "sagrada família".73

Contrariando essa interpretação, que reduz a postura da Escola de Frankfurt à da "sagrada família", pode-se afirmar que, embora a crítica à economia política já não sirva de modelo para a Escola de Frankfurt, ainda há normas e valores imanentes à cultura das sociedades capitalistas avançadas que têm um conteúdo emancipatório. Entretanto, essas normas e valores já não são fornecidos por teorias racionalistas da lei natural, cuja incorporação nas instituições da sociedade liberal-capitalista Marx tomou por certa. Já não é às normas de uma esfera pública burguesa, do mercado liberal e do Estado liberal, praticantes da norma legal, que a crítica pode recorrer. Com a transformação da dominação política em administração racional, esvazia-se o conteúdo racional e emancipatório da tradição da lei natural. As normas emancipatórias deixam de ser imanentes às estruturas públicas e institucionais. Em vez disso, têm que ser buscadas na promessa utópica não cumprida da cultura, da arte e da filosofia (Adorno), ou nas estruturas profundas da subjetividade humana que se rebelam contra os sacrifícios exigidos por uma sociedade opressora (Marcuse).

Assim, Adorno, que insistia no potencial utópico não realizado do Espírito absoluto, pôde iniciar a Dialética negativa com a seguinte frase: "A filosofia, que em certo momento pareceu ter sido superada, continua viva, pois perdeu-se o momento de sua efetivação."74 A filosofia deve empenhar-se numa autocrítica implacável, já que fracassou sua promessa de ser idêntica a uma realidade racional (Hegel), ou de ser uma arma material das massas em vias de efetivar a razão (Marx). Essa autocrítica da filosofia deve reativar a ilusão que sustenta a continuidade de sua própria existência — a saber, a ilusão de que a filosofia poderia tornar-se uma realidade. Essa ilusão deve ser desmistificada, pois trai a arrogância do pensamento conceitual que considera seu outro, aquilo que não é pensado, como um mero veículo da realização do pensamento. A realidade não é o continente em que o pensamento se esvazia, embora essa luta pela unificação do pensamento e da realidade seja o que confere à filosofia sua raison d’être. Essa aporia não deve ser abandonada, mas continuamente praticada e reavivada através da dialética negativa. O próprio Adorno dá a essa crítica o nome de "dissonância". É a dissonância entre o pensamento e a realidade, o conceito e o objeto, a identidade e a não-identidade, que deve ser revelada.75 A tarefa do crítico é iluminar as rachaduras na totalidade, as brechas na rede social, os fatores de desarmonia e discrepância através dos quais a inverdade do todo se revela e os vislumbres de uma outra vida tornam-se visíveis. Num ensaio sobre as possibilidades do conflito social nas sociedades capitalistas avançadas, Adorno pôde pois enunciar a afirmação, de outro modo surpreendente, de que os potenciais de conflito da sociedade não devem ser buscados nos protestos e lutas coletivos organizados, mas em gestos cotidianos, como o riso: "Todo riso coletivo brota dessa mentalidade de bode expiatório, de um compromisso entre o prazer de liberar a própria agressão e os mecanismos controladores da censura, que não o permitem."76 Quando se exige uma definição sociológica estrita dos conflitos sociais, bloqueia-se o acesso a essas experiências, que são inapreensíveis, mas "cujas nuances também contêm traços de violência e chaves de uma possível emancipação".77

Através de seu método da dissonância emancipatória, Adorno torna-se um etnólogo da civilização avançada, buscando revelar os elementos de resistência e de sofrimento implícitos, em que se torna manifesto o potencial humano de desafiar o mundo administrado. Não fica claro se as "chaves" de uma possível emancipação, a que Adorno recorre, podem justificar o ponto de vista normativo da teoria crítica. A acusação de que a crítica da razão instrumental articula o discurso privilegiado de uma "sagrada família" permanece sem resposta. A transição da crítica à economia política para a crítica à razão instrumental altera não somente o conteúdo criticado, mas a própria lógica da crítica social e da crítica às ideologias.

Tradução Vera Ribeiro

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Notas

1- Max Horkheimer, prefácio a Martin lay, The Dialectical Imagination: A History of the Frankfurt School and the Institute of Social Research, 1923-1950, Boston, MA, 1973, p. xii.

2- Idem.

3 – Herbert Marcuse, "Philosophie und kritische Theorie", segunda parte de Horkheimer e Marcuse, "Philosophie und kritische Theorie", Zeitschrift für Sozialforschung, 1937, p. 637, tradução minha. A seção de Marcuse desse texto produzido em co-autoria não está incluída na tradução inglesa padrão da "Teoria tradicional e crítica" de Horkheimer, encontrada em Critical Theory: Selected Essays, trad. M. J. O’Connell et al., Nova York, 1972.

4 – Jay, The Dialectical Imagination David Held, Introduction to Critical Theory, Berkeley e Los Angeles, 1980; Andrew Mato e Eike Gebhardt (orgs.), The Essential Frankfurt School Reader, Nova York, 1978. Held e Arato & Gebhardt fornecem bibliografias úteis de obras feitas pela e sobre a Escola de Frankfurt. Nos últimos anos, surgiram vários estudos que, com considerável freqüência, foram motivados por impulsos políticos de desacreditar a influência que a Escola de Frankfurt exerceu nos Estados Unidos. Entre eles, destacam-se por sua equivocação Zoltan Tar, The Frankfurt Schoo!: The Critical Theories of Max Horkheimer and Theodor Adorno, Nova York, 1977; George Freedman, The Political Philosophy of the Frankfurt Schooi, Ithaca, NY, 1981; e Perry Anderson, Considerations on Western Marxism, Atlantic Highlands, NH, 1976. Douglas Kellner e Rick Roderick fornecem um proveitoso panorama geral dessa nova literatura, em seu ensaio de revisão "Recent Literature on Critical Theory", New German Critique, 23, primavera-verão de 1981, p. 141-71. Quanto à recente literatura alemã, ver a nota seguinte.

5 – Helmut Dubiel, Wissenschaftsorganisation und politische Erfahrung: Studien zur frühen materialistischen Sozialwissenschaft, Frankfurt, 1979; Wolfgang BonB, Die Einübung des Tatsachenblicks, Frankfurt, 1982.

6- Max Horkheimer, "Zum Problem der Wahrheit", Zeitschriftfür Sozialforschung, 1935, p. 345; traduzido como "The Problem of Truth" in Mato e Gebhardt, The Essential Frankfurt School Reader, p. 429. "Die Warheit ist em Moment der richtigen Praxis" é vertido, nessa tradução, por "A verdade é um impulso [?] para a práxis correta".

7 -Max Horkheimer, "Zum Rationalismusstreit in der gegenwärtíngen Philosophie", Zeitschrift fiir Sozialforschung, 1934, p. 26-7, tradução minha.

8- Max Horkheimer, "Traditional and Critical Theory", in O’Connell, Critical Theory, p. 215; originalmente publicado em Zeitschrtft für Soziaiforschung, 1937, p. 269.

9 – Idem.

10- Marcuse, "Philosophie und kritische Theorie", p. 636-7, tradução minha.

11 – Max Horkheimer, "Postcript", in O’Connell, Critical Theory, p. 247. Originalmente publicado como a primeira parte de Horkheimer e Marcuse, "Philosophie und kritische Theorie", Zeitschrift für Sozialforschung, 1937, p. 627.

12 – idem, p. 248; Zeitschrift für Soziaiforschung, p. 628.

13 – ibid., p. 247; Zeitschrzft für Sozialforschung, p. 627.

14 – lbid., p. 248; Zeitschrift für Soziaiforsçhung, p. 628.

15- Ibid.

16- Ibid., p. 247; Zeitschrift für Sozialforschung, p. 627.

17- lbid., p. 249; Zeitschrift für Soziaiforschung, p. 628.

18- lbid., p. 249; Zeitschrift für Sozialforschung, p. 629.

19- Ver Wolfgang Bona e Norbert Schindler, "Kritische Theorie als interdisziplinärer Materialismus", in BonB e A. Honneth (orgs.), Soziaiforschung als Kritik, Frankfurt, 1982 (uma tradução para o inglês será publicada em S. Benhabib e W. Bona (orgs.), Max Horkheimer:A Retrospective, W. BonB, "Kritische Theorie und empirische Sozialforschung: Anmerkungen zu einem Fallbeispeil", introdução a Erich Fromm, Arbeiter und Angestellte am Vorabend des dritten Reichs: Eine sozialpsychologische Untersuchung, org. W. BonB, Stuttgart, 1980, p. 7ss.

20- Friedrich Pollock, "State Capitalism: Its Possibilities and Limitations", Studies in Phiiosophy and Social Science, 1941, p. 200.

21- Idem.

22- lbid., p. 201.

23- lbid.

24- G. Marramao, "Zum Verhältnis von politischer Ökonomie und kritischer Theorie", Ästhetik und Kommunikation:Beiträge zur politischen Erziehung, 4(11), abril de 1973, p. 79-93; A. Arato, "Political Sociology and Critique of Politics", in Arato e Gebhardt, The Essential Frankfurt School Reader, p. 3-5.

25- Moishe Postone e Barbara Brick, "Kritische Theorie und die Grenzen des traditionellen Marxismus", in BonB e Honneth, Sozialforschung als Kritik; uma versão abreviada desse artigo foi publicada como "Critical Pessimism and the Limits of Traditional Marxism", Theory and Society, li, 1982, p. 617-58.

26-Em seu controvertido ensaio "Die Juden und Europa", Horkheimer analisa o declínio do liberalismo econômico na Europa e examina o papel do anti-semitismo, de permitir que segmentos da população expressassem sua frustração contra o sistema da livre iniciativa, identificando os judeus como representantes dessa esfera (Zeitschrifi für Sozialforschung, 1939-40, p. 115-37). O ensaio indica uma certa cegueira na concepção de Horkheimer sobre a transição do liberalismo para o fascismo. Ele não distingue entre o sistema de livre mercado e livre iniciativa e princípios políticos, como o governo representativo, a separação dos poderes, a constitucionalidade, a legalidade e assim por diante.
Essa depreciação do papel do liberalismo político é um dos aspectos em que a Escola de Frankfurt deu continuidade à tradição do marxismo ortodoxo e fundiu, ou melhor, reduziu as estruturas políticas às econômicas. Nesse aspecto, o trabalho de Franz Neumann constitui uma exceção. A análise de Neumann sobre as contradições e ambivalências internas do liberalismo político, particularmente sua exposição da contradição entre a "legalidade" e a "soberania", continua a ser uma das melhores abordagens da história do pensamento político liberal; ver F. Neumann, Die Herrschaft des Gesetzes, trad. e org. A. Söllner, Frankfurt, 1980, inicialmente submetida como dissertação de doutorado à Escola de Economia de Londres, e supervisionada por Harold Laski sob o título de "The Governance of the Rule of Law" (1936). Ver também a coletânea de ensaios de Neumann, Wirtschaft, Staat und Demokratie, Frankfurt, 1977.

27-Além das obras mencionadas na nota anterior, ver Franz Neumann, Behemoth: Structure and Praxis of National Socialism, Londres, 1942; e Democratic and Authoritarian State, org. 1-1. Marcuse, Glencoe, 1957.

28 – Depois da emigração, Otto Kirchheimer foi catedrático de Ciências Políticas na Universidade de Colúmbia, até 1965. Suas publicações mais importantes foram Punishment and Social Structure, com G. Rushe (Nova York, 1939), Political Justice: The Use of Legal Procedure for Polítical Ends (Princeton, NJ, 1961), Politik und Verfassung (Frankfurt, 1964), e Funktionen des Staates unter Verfassung (Frankfurt, 1972).

29- Refiro-me às análises de Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialektik der Aufklärung (1947); a 7 ed. (Frankfurt, 1980) foi usada aqui; a tradução para o inglês de John Cumming, Dialectic of Enlightenment (Nova York, 1972), não é fidedigna e não faço referência a ela no texto; e Max Horkheimer, The Eclipse of Reason (1947; Nova York, 1974), traduzida para o alemão por A. Schmidt como Kritish der Instrumentellen Vernunft, Frankfurt, 1974. Também incluídos nessa discussão geral estão os ensaios de Horkheimer "Die juden und Europa", "Autoritärer Staat" (1940), tradução para o inglês em Arato e Gebhardt, The Essential Frankfurt School Reader, p. 95-118, reeditado em Helmut Dubiel eAlfons Söllner (orgs.), Wirtschaft, Recht und Staat and Nationalsozialismus, Frankfurt, 1981; "The End of Reason", Studies in Philosophy and Social Science, 1941, p. 366-88 (também incluído em Arato e Gebhardt, The Essential Frankfort School Reader, p. 26-49). Também incluo nessa discussão geral o ensaio de Herbert Marcuse "Some Social lmplications of Modero Technology" (Studies in Philosophy and Social Science. 1941, p. 4 14-39).

30- Enquanto Neumann, Gurland e Kirchheimer defendiam a continuidade entre a ordem econômica e política do nacional-socialismo e o capitalismo monopolista, Pollock, juntamente com Adorno e Horkheimer, defendia o ineditismo da ordem social criada pelo nacional-socialismo. Em seu ensaio "Some Social Implications of Modern Technology", Marcuse concorda, por um lado, com a tese da continuidade de Neumann e Gurland, mas, por outro, introduz um novo conceito, de racionalidade "técnica ou tecnológica", para caracterizar a nova forma de dominação emergente no nacional-socialismo; ver p. 4l6 ss.

31- Os processos de "racionalização societária" podem ser analisados em dois níveis: por um lado, institucionalmente, eles dão origem a um processo de diferenciação, em conseqüência do qual a economia e a política são separadas e relegadas a esferas independentes: o mercado e a produção, de um lado, o Estado e sua burocracia administrativa e judiciária, de Outro (ver Max Weber, Economy and Society, trad. Günther Roth e Claus Wittich, Berkeley, 1978, v. 1, p. 375ss). No plano das orientações da ação social, Weber analisa a "racionalização societária" através da transição da economia, da administração estatal e da lei de uma racionalidade substantiva para uma racionalidade formal (ver Economy and Society, v. 1, p. 85, 107, 178-80, 2 17-26; v. I, p. 666 ss, 875-89). É esse aspecto da análise de Weber que Adorno, Horkheimer e Marcuse integram em seu diagnóstico do capitalismo de Estado da década de 1940. Curiosamente, a interdependência do capitalismo e da dominação política burocraticamente administrada fornece-lhes um modelo para analisar o fascismo e, depois de 1945, as democracias industriais de massa do após-guerra.
Por "racionalização cultural", Weber refere-se, em primeiro lugar, à sistematização de várias visões de mundo ("The Social Psychology of World Religions", in From Max Weber: Essays in Sociology, org. e trad. H. H. Gerth e C. W. Mills, Nova York, 1974, p. 293). Ele descreve esse processo como originando-se com a demanda de que "a ordem mundial, em sua totalidade, seja, possa e deva ser, de algum modo, um ‘cosmo’ significativo" (idem, p. 281). Esses esforços de sistematização estão presentes em todas as religiões do mundo — ora resultando no monoteísmo, ora no dualismo místico, ora no misticismo. Em segundo lugar, o traço comum a todos esses esforços de sistematização, ao longo dos séculos, é o declínio do papel da magia (Entzauberung] (ibid., p. 290ss). Weber parece haver analisado esses processos de racionalização cultural à luz de uma distinção fundamental: a distinção entre as visões de mundo que levam a uma ética de abnegação mundial e as que levam a afirmações mundiais. Ver Weber, "Religious Rejections of the World and Their Directions", in From Max Weber, p. 233ss; originalmente, "Zwischenbetrachtung" dos Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie (1920); W. Schluchter, "Die Paradoxie der Rationalisierung", in Rationalismus und Weitbeherrschung, Frankfort, 1980, p. l9ss.
32- Ver, mais recentemente, Jürgen Habermas "The Entwinement of Myth and Enlightenment: Rereading Dialectic of Enlightenment", New German Critique, 126, primavera-verão de 1982, p. I3ss.

33- F. Grenz, Adornos Philosophie lo Grundndbegriffen. Auflössung einiger Deutungsprobleme, Frankfurt, 1974, p. 275, nota 26, citado por J. Schmucker, Adorno — Logik des Zerfalls, Stuttgart, 1977, p. 17.

34- Adorno e Horkheimer, Dialiektik der Aufklärung, p. 27.

35- Idem, p. 51, 167.

36- Ibid., p. 167.

37- Ibid., p. 37.

38- Ibid., p. 207.

39- Ibid., p. ix.

40- Ibid.

41- Theodor W. Adorno, Mínima Moralia, Londres, 1974, p. 50; Herbert Marcuse, One-Dimensional Man: Studies lo the Ideology of Advanced Industrial Society, Boston, MA, 1964.

42- Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, p. 62-3.

43- Idem, p. 13.

44 -Ibid.

45- A crítica da lógica da identidade subjacente à razão ocidental foi uma preocupação de Adorno desde sua palestra de 1931 sobre "A efetividade da filosofia". Quaisquer que sejam as diferenças existentes entre Adorno e Horkheimer nesse aspecto, a busca de uma lógica não discursiva e não identificatória, seja numa filosofia esotérica da linguagem, no símbolo ou no inconsciente coletivo da espécie, caracteriza tanto a Dialektik der Aufklärung quanto The Eclipse of Reason.

46- Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, p. 17-8.

47- Idem, p. 3.

48- Ibid., p. 16-7; Horkheimer, The Eclipse of Reason, p. 181; Kritik der instrumentellen Vernunft, p. 156.

49- Thomas Baumeister e Jens Kulenkampff, "Geschichts-phiosophie und philosophische Asthetik zu Adornos ästhetischer Theorie", Neue Hefte für Philosophie, 6, 1974, p. 80, tradução minha.

50 – Nesse contexto, Habermas distinguiu entre a "crítica tradicional da ideologia" e a "crítica totalizante" praticada por Adorno e Horkheimer: "A critica da ideologia pretende demonstrar que a validade de uma teoria que esteja sob investigação não se libertou do contexto de sua gênese. Ela quer demonstrar que por trás dessa teoria esconde-se uma inadmissível tensão de poder e validade e que, além disso, é a essa tensão que ela deve seu reconhecimento" ("The Entwinement of Myth and Enlightenment", p. 20). A crítica totalizante, em contraste, presume que a razão, "uma vez instrumentalizada, torna-se o assimilado ao poder e, com isso, desiste de seu poder crítico" (idem). Ela é forçada a renunciar ao "desenvolvimento totalitário do Esclarecimento com seus próprios meios — uma contradição performativa da qual Adorno tinha plena consciência" (ibid.).

51- Theodor W. Adorno, "Sociology and Empirical Research", lo The Positivist Dispute in German Sociology, trad. Glyn Adey e David Frisby, Londres, 1969, p. 69.

52- G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik. org. G. Lasson, Hamburgo, 1976, v. 11, p. 11-2, 101-2; Hegel’s Science of Logic, trad. A. V. Miller, Nova York, 1969, p. 396-7, 479-80.

53- Idem, p. 180-4; Science of Logic, p. 550-3.

54-G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, org. J. Hoffmeister, Hamburgo, 1952; Hegel’s Phenomenology of Spirit. trad. A. V. MiIler, Oxford, 1977, p. 18.

55-Theodor W. Adorno, Negative Dialektik, Frankfurt, 1973, especialmente p. 32-42.

56- Idem, p. 295-354.

57- Theodor W. Adorno, "On the Logic of the Social Sciences", in The Positivist Dispute in German Socioiogy, p. 107.

58- Theodor W. Adorno, "Kultur und Verwaltung", lo Soziologische Schriften, Frankfurt, 1979, v. 1, p. 131.

59- Max Horkheimer, ‘The End of Resson", Studies in Philosophy and Social Science, p. 377.

60- Idem.

61 – Ibid.,p.379.

62- "A cultura de hoje carimba tudo com a semelhança": Adorno e Horkheimer, Dialektik der Aufklärung, p. 108.

63- "A sociedade perpetua a natureza ameaçadora sob a forma da perene compulsão organizacional, que se reproduz nos indivíduos como uma autopreservação persistente e, com isso, revida o ataque da natureza como dominação social sobre a natureza" (idem, p. 162).

64- Pollock, "State Capitalism", Studies in Philosophy and Social Science, p. 217-21.

65- Herbert Marcuse, Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud, Nova York, 1962, p. 84. Uma vez que esse volume é, na verdade, o terceiro dos Gesammelte Schriften de Marcuse, usei-o como texto principal na discussão que se segue.

66- Marcuse, Triebstruktur und Gesellschaft: Ein philosophischer Beitrag zu Sigmund Freud, trad. M. von Eckhardt-Jaffe, Frankfurt, 1979, p. 80-1.

67- Idem, p. 88-9.

68 – Ibid., p. 93.

69- Ibid., p. 198-9.

70- "Eros, que se impõe à consciência, é movido pela memória; com a memória, volta-se contra a ordem da privação; utiliza a memória em seu esforço de superar o tempo num mundo dominado pelo tempo" (ibid., p. 198).

71- Ibid., p. 146-7.

72- Claus Offe, "Technik und Eindimensionalität: Eine Version der Technokratie these", in Habermas (org.), Antworten auf Herbert Marcuse, Frankfort, 1978, p. 87.

73- Rüdiger Bubner, "Was ist kritische Theorie?", in Hermeneutik und Ideologiekritik, Frankfurt, l971,p. 179.

74- Adorno, Negative Dialektik, p. 15.

75- Adorno, "Spätkapitalismus oder Industriegesellschaft", in Sozioiogische Schriften. v. 1, p. 369.

76- Adorno, "Ammerkungen zum sozialen Konflikt heute", lo Soziologische Schriften, v. 1, p. 193.

77- Idem.

Contato:
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Fonte: Antivalor

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Slavoj Zizek

História e consciência de classe (1923), de Georg Lukács, é um

dos poucos verdadeiros eventos na história do marxismo. Hoje, nossa

experiência do livro é apenas como de uma estranha lembrança fornecida

por uma época já distante – para nós, é até mesmo difícil imaginar o

impacto verdadeiramente traumático que seu aparecimento teve nas posteriores

gerações de marxistas. O próprio Lukács, na sua fase termidoriana,

i. e., do começo dos anos trinta em diante, tentou desesperadamente se

afastar dele, tratando-o como um documento com mero interesse histórico.

Aceitou que fosse reeditado apenas em 1967, fazendo-o acompanhar de um

novo e longo Prefácio autocrítico. O livro teve, até que essa reedição “oficial”

aparecesse, uma espécie de existência fantasmagórica e subterrânea

como uma entidade “não morta”, que circulava em edições piratas entre

estudantes alemães da década de sessenta, estando também disponível em

poucas e raras traduções (como a legendária edição francesa de 1959). No

meu próprio país, a agora defunta Iugoslávia, referir-se a História e consciência

de classe servia como um signe de reconnaissance ritualístico para

saber se se fazia parte do círculo marxista crítico reunido em torno da

revista Praxis. Seu ataque à noção de Engels de “dialética da natureza” foi

crucial para a rejeição crítica da crença que a proposição central do “materialismo

dialético” seria a teoria do conhecimento “reflexiva”. O impacto

do livro esteve longe de se restringir a círculos marxistas: mesmo

Heidegger foi claramente afetado por História e consciência de classe,

havendo alguns sinais inconfundíveis disso em O ser e o tempo. Até no

último parágrafo, o autor, numa clara reação à crítica de Lukács à “reificação”,

pergunta: “há muito tempo sabemos que existe o perigo da ‘reificação

da consciência’. Mas o que significa reificação [verdinglichung]?

Qual é sua origem?… A ‘diferença’ entre ‘consciência’ e ‘coisa’ é o bastante

para haver um desenvolvimento pleno do problema ontológico?”1

Como, então, História e consciência de classe passou a ter um

status de livro proibido quase-mítico, cujo impacto foi talvez comparável

apenas ao de Pour Marx, escrito pelo posterior grande antípoda antihegeliano

de Lukács, Louis Althusser?2 A resposta que primeiro vem à

mente é evidentemente que estamos discutindo o texto fundador de todo o

marxismo ocidental de inspiração hegeliana. Nessa linha, o livro combina

uma postura revolucionária engajada com temas que foram mais tarde

desenvolvidos pelas diferentes linhas da chamada Teoria Crítica chegando

até os Estudos Culturais de nossos dias (por exemplo, a noção de que seriam

componentes estruturais de toda a vida social o “fetichismo da mercadoria”,

a “reificação” e a “razão instrumental” etc). No entanto, olhando

mais de perto, as coisas aparecem numa luz ligeiramente diferente: há uma

quebra radical entre História e consciência de classe (mais precisamente,

entre os trabalhos de Lukács escritos em torno de 1915 a 1930, inclusive seu

Lenin de 1925, e uma série de outros textos curtos desse período publicados

nos anos sessenta sob a rubrica Ética e política), e a posterior tradição do

marxismo ocidental. O paradoxo (ao menos, para nossa sensibilidade “póspolítica”

ocidental) é que História e consciência de classe é um livro

filosoficamente muito sofisticado, comparável às maiores realizações do

pensamento não-marxista do período, ao mesmo tempo que também está

inteiramente envolvido nas lutas políticas de seu tempo, refletindo a radical

experiência política leninista do autor (entre outras coisas, Lukács foi

comissário da cultura na curta experiência do governo comunista da

Hungria de Bela Kun em 1919). O paradoxo é que, em comparação com o

marxismo ocidental “padrão” da Escola de Frankfurt, História e consciência

de classe é ao mesmo tempo muito mais engajado politicamente como

filosoficamente é muito mais marcadamente hegeliano-especulativo (veja,

por exemplo, a noção do proletariado como sujeito e objeto da história, idéia

com a qual os membros da Escola de Frankfurt nunca sentiram-se confortáveis).

Se é que houve algum dia um filósofo do leninismo e do Partido

Leninista, o Lukács marxista dos primeiros dias foi quem avançou mais

longe nessa direção, chegando a defender os elementos “não democráticos”

do primeiro ano do regime soviético contra a famosa crítica de Rosa

Luxemburgo. O crítico acusou a revolucionária de “fetichizar” a democracia

formal, ao invés de tratá-la como uma das possíveis estratégias a ser utilizadas

ou rejeitadas a fim de fazer avançar a situação revolucionária concreta.

Atualmente, aquilo que mais se deve evitar é precisamente esquecer o

aspecto político do livro, o que corresponderia a reduzir Lukács a um

respeitável crítico cultural, que nos adverte sobre a “reificação” e a “razão

instrumental”, motivos que já foram há um bom tempo apropriados até

mesmo pelos críticos conservadores da “sociedade do consumo”.

Como texto fundador do marxismo ocidental, História e consciência

de classe é uma exceção que, entretanto, mais uma vez, confirma

a idéia de Schelling de que “o início é a negação daquilo que se inicia com

ele”. No que se baseia esse status excepcional? Em meados dos anos vinte,

aquilo que Alain Badiou chama de “evento de 1917” começou a exaurir seu

potencial revolucionário, ao mesmo tempo que o processo tomava uma

viragem termidoriana. Com a exaustão da “sequência revolucionária de

1917” (Badiou), já não era mais possível um engajamento teórico-político

direto, como o que aparece em História e consciência de classe de Lukács.

O movimento socialista definitivamente rachou entre o reformismo parlamentar

social-democrata e a nova ortodoxia stalinista, enquanto o marxismo

ocidental, que se absteve de apoiar abertamente qualquer um dos dois

pólos, abandonou o envolvimento político direto e tornou-se uma parte da

máquina acadêmica existente, estabelecendo, a partir daí, uma tradição que

vai da Escola de Frankfurt até os atuais Estudos Culturais. Aí está a principal

diferença que separa essa tradição do Lukács da década de vinte. Por

outro lado, a filosofia soviética foi gradualmente assumindo a forma de

“materialismo dialético”, funcionando como a ideologia de legitimação do

“socialismo realmente existente” – é mesmo sinal da ascensão da ortodoxia

soviética termidoriana os violentos ataques desferidos contra Lukács e

seu companheiro teórico Karl Korsch, cujo Marxismo e filosofia é uma

espécie de peça de acompanhamento à História e consciência de classe,

ambos publicados em 1923.

O momento de viragem foi o quinto congresso do Comintern de

1924, o primeiro congresso após a morte de Lênin, e também o primeiro a

transcorrer depois que ficou claro que a onda revolucionária tinha se exaurido

na Europa e que o socialismo russo teria que sobreviver por conta

própria. Na sua famosa intervenção nesse congresso, Zinoviev fez questão

de desferir um ataque antiintelectualista e de fácil apelo contra os desvios

“ultra-esquerdistas” de Lukács, Korsch e outros “professores”, como

depreciativamente referiu-se a eles, apoiando, assim, a crítica de Laszlo

Rudas, companheiro de Lukács no partido húngaro, contra seu “revisionismo”.

Mais tarde, as principais críticas a Lukács e Korsch passaram a ser

fornecidas por Abram Deborin e sua escola filosófica, na época dominante

na União Soviética (apesar de posteriormente ter sido expurgada sob a

acusação de “idealismo hegeliano”). Escola essa que foi a primeira a sistematicamente

desenvolver a concepção de que o marxismo seria um método

dialético com validade universal, capaz de elaborar leis gerais que poderiam

ser aplicadas tanto à análise dos fenômenos naturais como dos sociais

– a dialética marxista é estripada, dessa forma, de sua atitude prático-revolucionária,

que leva ao engajamento direto, e transforma-se numa teoria

epistemológica geral que lida com as leis universais do conhecimento científico.

Como notou Korsch, logo depois desses debates, críticas vindas dos

inimigos declarados, o Comintern e o “revisionismo” social-democrata,

basicamente repetiam os mesmos contra-argumentos contra ele e Lukács,

denunciando seu “subjetivismo” (na verdade, o engajamento prático da

teoria marxista etc.). Já não se podia admitir tal posição numa época em

que o marxismo estava transformando-se numa ideologia de Estado cuja

raison d’être última era legitimar as pragmáticas decisões do Partido por

meio das não-históricas (“universais”) leis da dialética. Sintomático disso

é a reabilitação da idéia de que o materialismo dialético seria a “visão de

mundo [Weltanschaung] da classe trabalhadora”. Para Lukács e Korsch,

assim como para o próprio Marx, por definição, “visão de mundo” designa

a atitude “contemplativa” da ideologia, que a engajada teoria revolucionária

marxista deveria superar.

Evert Van der Zweerde3 descreveu em detalhes a utilização ideológica

pelo regime soviético da filosofia do materialismo dialético, pretensamente

a “visão de mundo científica da classe trabalhadora”. Apesar

do materialismo dialético reconhecer ser uma ideologia,não é a ideologia

que proclama ser. Não motivou, mas legitimou atos políticos; não se deveria,

assim, acreditar nela, mas ritualmente encená-la. Sua reivindicação

de que era uma “ideologia científica” e, consequentemente, a “reflexão

correta” das circunstâncias sociais excluía a possibilidade que existisse

uma ideologia “normal” na sociedade soviética, já que ela “refletiria” a

realidade social de uma maneira “errada” etc. Perde-se, por conseqüência,

inteiramente o fio da meada ao se tratar o infame diamat como um sistema

filosófico genuíno. Ele funcionava, na verdade, como o instrumento de

legitimação do poder que deveria ser ritualmente encenado e, como tal, é

melhor colocá-lo na densa teia de relações de poder. Emblemático disso

são os diferentes destinos de I. Iljenkov e P. Losev, quase protótipos de

filósofos russos durante o socialismo. Losev foi o autor do último livro

publicado na URSS (em 1929) a rejeitar abertamente o marxismo, que

descartava como “óbvia perda de tempo”. No entanto, depois de uma

pequena temporada na prisão, lhe foi permitido retomar sua carreira

acadêmica e, durante a Segunda Guerra, voltar a dar aulas. A “fórmula”

que encontrou para sobreviver foi refugiar-se na história da filosofia

(estética) especializando-se numa disciplina acadêmica, onde dedicava-se

ao estudo de autores gregos e romanos. Aparentemente narrando e interpretando

o pensamento de autores antigos, especialmente Plotino e outros

neoplatônicos, pôde contrabandear suas próprias teses místicas, ao mesmo

tempo que, nas introduções a seus livros, macaqueava a ideologia oficial

com uma citação ou duas de Khruschev ou Brezhnev. Dessa forma, foi

capaz de sobreviver a todas as vicissitudes do socialismo e viveu para ver

o fim do comunismo, consagrado como o decano da autêntica herança

espiritual russa! Em contraste, Iljenkov, um soberbo dialético e especialista

em Hegel, tornou-se, como marxista-leninista convicto, uma figura

descolada. Por essa razão (i.e. porque escrevia de uma maneira que revelava

seu envolvimento pessoal com o que escrevia, procurando fazer do

marxismo uma filosofia séria e não o equivalente a uma série de fórmulas

ritualísticas de legitimação4), foi excomungado e levado ao suicídio. Será

que é possível encontrar melhor demonstração de como uma ideologia

efetivamente funciona?

Num gesto que corresponde a um termidor pessoal, Lukács, no

início dos anos trinta, refugiou-se nas águas mais especializadas da estética

e da teoria literária marxista, justificando seu apoio público às políticas

stalinistas com base na crítica hegeliana à bela alma. A União Soviética,

inclusive todas suas dificuldades não previstas, foi o resultado da Revolução

de Outubro, portanto, ao invés de condená-la a partir da posição

confortável da bela alma e, assim, manter as mãos limpas, se deveria reconhecer

corajosamente “o cerne da encruzilhada do presente” (a fórmula de

Hegel para a reconciliação pós-revolucionária). Adorno estava inteiramente

justificado ao designar sarcasticamente esse Lukács como alguém que confundiu

o barulho de suas correntes com a marcha triunfante do Espírito

Universal, e, consequentemente, apoiou a “reconciliação à força” do indivíduo

e da sociedade nos países comunistas do leste europeu.5

Apesar de tudo, o destino de Lukács nos leva a confrontar o difícil

problema da emergência do stalinismo. É até excessivamente fácil contrastar

o espírito autenticamente revolucionário do “Evento de 1917” com

seu posterior termidor stalinista – o verdadeiro problema é saber “como a

partir de lá chegamos aonde chegamos”. A grande tarefa, como foi enfatizado

por Alain Badiou, é de pensar a necessidade da evolução no interior do

leninismo em direção ao stalinismo sem negar o tremendo potencial emancipador

do Evento de outubro, e também sem cair no velho papo furado liberal

sobre o potencial “totalitário” da política emancipadora radical, que

sugere que toda revolução leva a uma repressão pior do que a antiga. Ao

mesmo tempo que se deve reconhecer que o stalinismo é inerente à lógica

revolucionária leninista e não o fruto de alguma influência corruptora externa,

como o “atraso russo” ou a postura ideológica “asiática” das massas, é

necessário continuar a fazer uma análise concreta da lógica do processo

político e, a todo custo, evitar usar conceitos imediatos quase-antropológi

cos ou genericamente filosóficos, como “razão instrumental”. A partir do

momento que aceitamos tal postura, o stalinismo perde sua especificidade,

sua dinâmica política particular, e transforma-se apenas num outro exemplo

da noção geral. Exemplo disso é o famoso comentário de Heidegger, na sua

Introdução à metafísica, de que o comunismo russo e o americanismo são,

do ponto de vista histórico, “metafisicamente iguais”.

É evidente que, no interior do marxismo ocidental, a Dialética do

esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, e os diversos ensaios posteriores

de Horkheimer sobre a “razão instrumental” levaram à mudança fatal, de

análises sociopolíticas concretas às generalizações antropofilosóficas. A

transformação exige que, ao reificar a “razão instrumental”, ela mesma deixe

de se basear em relações capitalistas concretas, para tornar-se, de maneira

praticamente imperceptível, o “princípio” ou “fundação” quase-transcendental.

Junto com essa mudança, a tradição da Escola de Frankfurt evita quase

inteiramente a confrontação teórica direta com o stalinismo, o que contrasta

claramente com sua obsessão com o anti-semitismo fascista. As exceções a

essa regra são reveladoras. O Behemoth, de Fraz Neumann, um estudo do

nacional-socialismo que, da maneira bastante comum no final dos anos trinta

e quarenta, sugere que os três grandes sistemas mundiais da época – o

emergente capitalismo do New Deal, o fascismo e o stalinismo – tenderiam

a levar à mesma sociedade “administrada”, burocrática e inteiramente organizada.

Da mesma forma, O marxismo soviético, de Herbert Marcurse, seu

menos apaixonado e, talvez, pior livro, estranhamente traz uma análise neutra,

sem nenhum engajamento claro, sobre a ideologia soviética. Finalmente,

há tentativas de alguns discípulos de Habermas que, ao refletirem sobre o

então fenômeno nascente da dissidência, tentaram elaborar um conceito de

sociedade civil como o espaço onde apareceria a resistência ao regime comunista.

Politicamente essas análises são interessantes, mas não oferecem uma

teoria global satisfatória da especificidade do “totalitarismo” stalinista.6 A

desculpa padrão, segundo a qual os autores clássicos da Escola Frankfurt não

queriam se opor abertamente ao comunismo já que, ao fazerem isso, domesticamente

estariam fazendo o jogo daqueles que eram favoráveis ao capitalismo

e à Guerra Fria, é evidentemente insuficiente. Na verdade, o ponto central

não é que seu medo de servirem ao anticomunismo oficial provaria como

eram secretamente pró-comunistas, mas, o oposto. Se fossem realmente

colocados contra a parede para definirem sua posição na Guerra Fria, os

membros da Escola de Frankfurt provavelmente escolheriam a democracia

liberal ocidental (como fez explicitamente Horkheimer em alguns de seus

últimos escritos). No final das contas, essa solidariedade com o sistema ocidental,

quando ele esteve realmente ameaçado, é o que os teóricos de

Frankfurt tinham vergonha de assumir publicamente, o que contrasta com a

“oposição crítica socialista e democrática” na República Democrática

Alemã, que criticava abertamente o domínio do Partido. Mas no momento

em que a situação se agravou e o socialismo passou realmente a ser ameaçado,

eles (Brecht nas manifestações de trabalhadores em 1953, Christa Wolf

na Primavera de Praga em 1968) passaram a apoiar o sistema abertamente…

O “stalinismo” (o socialismo realmente existente) foi, assim, um assunto

traumático para a Escola de Frankfurt, sobre o qual ela preferiu se calar. Esse

silêncio foi a única maneira que seu intelectuais encontraram para manter

uma inconsistente posição de solidariedade implícita com a democracia liberal

ocidental, sem perder a máscara oficial de críticos esquerdistas “radicais”.

Se assumissem abertamente essa solidariedade perderiam sua aura

“radical”, convertendo-se em meramente mais uma versão liberal esquerdista

e anticomunista da Guerra Fria, enquanto que se demonstrassem muita simpatia

pelo “socialismo realmente existente” seriam forçados a trair seus verdadeiros

compromissos não assumidos.

Apesar da tarefa de explicar a ascensão do stalinismo estar além

do escopo deste ensaio, somos tentados a arriscar um curto comentário preliminar

sobre ela. Todo marxista se lembra do comentário de Lenin, nos

seus Cadernos filosóficos, de que aquele que não leu e estudou cuidadosamente

toda a Ciência da lógica de Hegel não pode realmente entender O

capital de Marx. Na mesma linha, somos tentados a afirmar que quem não

leu e estudou com cuidado os capítulos sobre “Julgamento” e “Silogismo”

da Lógica de Hegel não pode realmente entender a emergência do stalinismo.

Isto é, a lógica da emergência do fenômeno histórico pode ser melhor

entendida com base na sucessão das três formas de mediação silológica,

que vagamente correspondem à tríade marxismo-leninismo-stalinismo. Os

três termos mediados (o Universal, o Particular e o Singular) representam

a História (o movimento histórico universal), o proletariado (a classe particular

que tem uma relação privilegiada com o Universal) e o Partido

Comunista (o agente singular). Na primeira forma marxista clássica de

mediação, o Partido realiza a mediação entre a História e o proletariado:

sua ação permite que a classe trabalhadora “empírica” torne-se consciente

da missão histórica inscrita em sua própria situação social e aja de acordo

com ela, i.e., torna-se sujeito revolucionário. A ênfase está na atitude

“espontaneamente” revolucionária do proletariado: o Partido apenas

desempenharia um papel maiêutico, tornando possível a conversão, meramente

formal, do proletariado de classe-em-si para classe-para-si. No

entanto, como é sempre o caso em Hegel, a “verdade” dessa mediação está

que, no curso do movimento, a posição inicial, a identidade presumida, é

falsificada. Na primeira forma, a identidade presumida é entre o proletariado

e a História, i.e., a idéia de que a missão revolucionária de libertação

universal está inscrita na própria condição social objetiva do proletariado

como “classe universal”, classe cujos interesses particulares confundem-se

com os interesses universais da humanidade. O terceiro termo, o Partido, é

meramente o operador que realiza esse potencial universal do particular. É

palpável, porém, que no curso da mediação o proletariado atinja “espontaneamente”

apenas uma consciência economicista e reformista, o que nos

leva à conclusão leninista: a constituição do sujeito revolucionário só é

possível quando os intelectuais do Partido compreenderem a lógica interna

do processo histórico e, de acordo com ela, “educarem” o proletariado.

Nessa segunda forma, o proletariado tem seu papel reduzido ao de mediador

entre a História (o processo histórico global) e a consciência científica

a respeito dela internalizada no Partido. Depois de compreender a lógica

interna do processo histórico, o Partido “educa” os trabalhadores, que

serão o instrumento consciente da realização do fim da história. A identidade

pressuposta nessa segunda forma é entre o Universal e o Singular, a

História e o Partido, i.e., a concepção de que o Partido como “intelectual

coletivo” compreende o processo histórico. Esse pressuposto é melhor

entendido com a superação dos aspectos “subjetivo” e “objetivo”. A noção

da História como um processo objetivo ao qual correspondem leis

necessárias é estritamente correlata com a dos intelectuais do Partido como

Sujeitos cujo conhecimento privilegiado – compreensão – do processo possibilita

a intervenção e direção do processo. Como era de se esperar, é esse

pressuposto que é falsificado no curso da segunda mediação, levando à terceira,

“o Stalinismo”, forma de mediação que contém a “verdade” de todo

o movimento, no qual o Universal (a História ela mesmo) faz a mediação

entre o proletariado e o Partido. Em termos simplistas, o Partido apenas usa

a referência à História – i.e., sua doutrina, “o materialismo histórico e

dialético”, para garantir seu acesso privilegiado à “necessidade inexorável

do progresso histórico” – a fim de legitimar sua dominação e exploração

sobre a classe trabalhadora. Ela fornece, dessa forma, às decisões pragmáticas

e oportunistas do Partido uma espécie de “justificativa ontológica”.

Em termos da coincidência especulativa dos opostos, ou do “julgamento

infinito”, em que o mais alto coincide com o mais baixo, não deixa de ser

significativo que os trabalhadores soviéticos eram acordados de manhã

cedo pela música tocada por amplificadores que reproduziam os primeiros

acordes da Internacional. Suas palavras, “De pé, ó vítimas da fome!” passa

a ter um significado irônico mais profundo: a “verdade” última do significado

patético original (“Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra

sem amos, a Internacional!”) passa a ser seu significado literal, o apelo

dirigido aos trabalhadores cansados “De pé, ó vítimas da fome, comecem

a trabalhar para nós, a nomenklatura do Partido!”.

Se, nessa tríplice mediação silológica da História, do proletariado

e do Partido, cada forma de mediação é a “verdade” da precedente, então

o Partido, que instrumentaliza a classe trabalhadora para realizar seu fim,

justificado que está na compreensão correta que teria da lógica interna do

processo histórico, é a “verdade” da noção de que o Partido possibilitaria ao

proletariado tomar consciência da sua missão histórica, descobrindo seu

“verdadeiro” interesse. A exploração brutal da classe trabalhadora pelo

Partido seria, dessa forma, a “verdade” da idéia de que por meio dela o

Partido realiza sua compreensão da História. Será que isso significa que esse

movimento é inexorável, que estamos lidando com uma lógica de ferro com

base na qual, a partir do momento que aceitamos o ponto de partida – a premissa

que o proletariado, devido à sua posição social, é a “classe universal”

– ficamos presos, numa espécie de compulsão diabólica, a sermos conduzidos,

no final do caminho, ao Gulag? Se isso fosse verdade, História e consciência

de classe, apesar de (ou devido a) seu brilho intelectual, seria o

texto fundador do stalinismo, e a crítica pós-moderna do livro, segundo a

qual ele seria a manifestação última do essencialismo hegeliano, assim

como a identificação, por parte de Althusser, do hegelianismo com o stalinismo

(a necessidade teleológica de toda a História progredir em direção à

revolução proletária, momento decisivo, em que o proletariado como sujeito

e objeto da História, a “classe universal” tornada consciente pelo Partido da

missão inscrita em sua posição social objetiva, realiza o ato revelador de sua

própria libertação) estariam inteiramente justificados. A reação violenta dos

partidários do “materialismo dialético” à História e consciência de classe

seria apenas uma confirmação da regra de Lucien Goldman a respeito de

como uma ideologia dominante precisa necessariamente negar suas premissas

fundamentais. Dessa perspectiva, a noção megalomaníaca, que Lukács

toma emprestado de Hegel, do Partido leninista como correspondendo ao

espírito da história, já que ele seria o “intelectual coletivo” do proletariado,

sujeito e objeto da História, seria a “verdade” escondida por trás da

aparentemente mais modesta versão “objetivista” do stalinismo sobre como

a atividade revolucionária estaria baseada num processo ontológico global

dominado por leis dialéticas universais. E, claro, seria fácil desconstruir o

conceito hegeliano da identidade do Sujeito e Objeto com base na premissa

básica do desconstrutivismo de que o sujeito emerge precisamente de/como

ausência de Substância (Ordem das Coisas objetiva), que há subjetividade

apenas quando existe uma “rachadura no edifício do Ser”, na medida em

que o universal está, de alguma maneira, “fora dos trilhos”, “é descontínuo”.

Em poucas palavras, a realização completa do sujeito não só falha sempre,

mas aquilo a que Lukács não prestou atenção já seria um modo de subjetividade

“imperfeita”, sujeito frustrado e, efetivamente, o próprio sujeito. A

versão “objetivista” stalinista seria, portanto, por razões estritamente filosóficas,

a “verdade” de História e consciência de classe. Como, por definição,

o sujeito sempre falharia, sua completa realização como Sujeito e Objeto da

História necessariamente levaria ao seu próprio cancelamento, sua autoobjetivação

como instrumento da História. Indo mais além, seria fácil de

defender, contra esse impasse hegelo-stalinista, a posição pós-moderna de

Laclau, de que a contingência radical seria o próprio terreno da subjetividade

(política). Universais políticos deveriam ser entendidos como conceitos

“vazios”, a ligação entre eles e o conteúdo particular que os hegemoniza

devendo ser buscada naquilo que envolve a disputa ideológica, por sua

vez, inteiramente contingente. O que equivale a dizer que o sujeito político

tem sua missão universal inscrita na sua condição social “objetiva”.

Mas é isso que História e consciência de classe realmente sugere?

Será que se pode deixar de prestar atenção a Lukács em razão dele

ser um defensor do argumento pseudo-hegeliano de que o proletariado

seria o Sujeito e Objeto da História? Voltemos ao contexto político concreto

de História e consciência de classe, no qual Lukács agia como um revolucionário

engajado. Colocando as coisas em termos crus e simplistas, a

escolha, para as forças revolucionárias na Rússia de 1917, em que a burguesia

era incapaz de levar a cabo a revolução democrática, colocava-se

nos seguintes termos. Por um lado, havia a postura menchevique de obedecer

à lógica “do desenvolvimento das etapas objetivas”: realizando

primeiro a revolução democrática, depois a revolução proletária. Assim, no

remoinho de 1917, os partidos radicais, ao invés de capitalizar a desintegração

progressiva do aparato de Estado e construir, com base no descontentamento

popular generalizado, uma alternativa revolucionária, deveriam

resistir à tentação de empurrar o movimento longe demais, sendo presumivelmente

melhor aliar-se com elementos democráticos burgueses a fim

de “amadurecer” a situação revolucionária. Desse ponto de vista, a tomada

de poder por parte de socialistas em 1917, quando a situação ainda não

estava “madura”, levaria à volta ao terror primitivo… (Apesar de hoje o

temor das consequências catastróficas de um levante “prematuro” poder

parecer antecipar o Stalinismo, a ideologia do stalinismo leva, de fato, a um

retorno a essa lógica “objetivista” dos estágios necessários de desenvolvimento.)

Por outro lado, a estratégia leninista era de antecipar-se, lançandose

por inteiro no paradoxo da situação, aproveitando as oportunidades e

intervindo mesmo quando as condições eram “prematuras”, com a aposta

que a própria intervenção “prematura” mudaria a relação de forças

“objetivas”, dentro da qual a situação inicialmente parecia ser “prematura”.

Isto é, ela minaria o próprio padrão de referência, que nos informa que

a situação era “prematura”.

Nessa linha, é preciso tomar cuidado para não perder o fio da

meada: não é que Lenin, diferentemente dos mencheviques e dos céticos no

interior do Partido Bolchevique, acreditasse que a complexa situação de

1917, i.e., a crescente insatisfação das massas com as políticas irresolutas do

governo provisório, oferecesse uma chance única de “pular” uma fase (a

revolução democrática burguesa), ou de “condensar” os dois estágios consecutivos

necessários (a revolução democrático burguesa e a revolução proletária)

num só. Tal raciocínio mantém a mesma lógica objetiva “reificada”

dos “estágios necessários de desenvolvimento”, mas aceita que existiria um

ritmo diferente de evolução em variadas circunstâncias concretas (i.e., em

alguns países, o segundo estágio poderia suceder imediatamente ao

primeiro). O argumento de Lênin é muito mais forte. Em última instância,

não há nenhuma lógica objetiva dos “estágios de desenvolvimento

necessários”, já que “complicações” aparecem na intricada textura das situações

concretas e/ou os resultados não antecipados de intervenções “subjetivas”

sempre bagunçam sua evolução normal. Como Lenin gostava de

observar, o colonialismo e a superexploração das massas na Ásia, África e

América Latina afeta e “desloca” radicalmente a luta de classes “normal”

nos países capitalistas avançados. Falar de “luta de classes” sem levar em

conta o colonialismo é uma abstração vazia, que, quando se traduz em

política concreta, pode apenas resultar na aceitação do papel “civilizador”

do colonialismo. Portanto, ao subordinar a luta anticolonialista das massas

asiáticas à “verdadeira” luta de classes nos Estados capitalistas avançados,

a burguesia passaria a definir de facto os termos da luta de classes… (Mais

uma vez, aqui se pode notar uma proximidade não esperada com a idéia

althusseriana da “sobredeterminação”. Não há nenhuma regra última que

permita traçar “exceções”. Na história real, há apenas exceções.) É também

tentador utilizar termos lacanianos sobre isso. O que está em jogo nessa fórmula

alternativa é a (não) existência do “grande Outro”. Os mencheviques

acreditavam nas bases auto-suficientes da lógica positiva do desenvolvimento

histórico, enquanto os bolcheviques (ao menos Lenin) tinham consciência

de que “o grande Outro não existe”. A intervenção apolítica não

acontece a partir das coordenadas dadas por uma matriz global subjacente,

já que o que ela faz é precisamente “reelaborar” essa matriz global.

Essa é a razão por que Lukács admirava tanto Lenin. Seu Lenin

era aquele que, diante da disputa na Social-Democracia russa entre

bolcheviques e mencheviques sobre quem deveria ser membro do partido,

escreveu: “Por algumas vezes, todo o destino do movimento operário pode,

por certo tempo, ser decidido por uma ou duas palavras presentes no programa

do partido.” Ou o Lenin que quando percebeu, no fim de 1917, a possibilidade

de tomada revolucionária do poder disse: “A História nunca nos

perdoará se desperdiçarmos a oportunidade!” Num nível mais geral, a

história do capitalismo é uma longa história de como a referência ideológica

predominante foi capaz de cooptar (e diluir o potencial subversivo) dos

movimentos e demandas que pareciam ameaçar sua própria sobrevivência.

Por exemplo, por um bom tempo, libertários em matéria sexual acreditavam

que a repressão monogâmica era necessária para a sobrevivência do capitalismo

– sabemos agora que o capitalismo não só pode tolerar, mas incitar

e explorar formas de sexualidade “pervertidas”, sem mencionar seu convívio,

sem maiores problemas, com a indulgência promíscua em prazeres

sexuais. No entanto, a conclusão que se pode tirar disso não é que o capitalismo

tem a capacidade sem fim de integrar e, assim, diluir o potencial

subversivo de todas as demandas particulares – já que a questão do timing,

de “aproveitar o momento”, é decisiva. Uma demanda particular, num dado

momento, possui poder de detonação global, funcionando como um substituto

metafórico para a revolução global. Se, de maneira inflexível, insistimos

nela, o sistema pode explodir. Se, entretanto, esperamos por tempo

demais, o curto-circuito metafórico entre essa demanda particular e a derrubada

global é dissolvido, e o Sistema pode, com hipócrita satisfação, perguntar,

“não era isso que você queria? Então, fique com o que pediu!”, sem

que nada de realmente radical aconteça. O artifício que Lukács chamou de

Augenblick (o momento quando, por pouco tempo, há a abertura para um ato

de intervenção numa situação) é a capacidade de aproveitar o momento

certo, agravando o conflito antes que o Sistema possa acomodar a demanda.

Passamos a ter, assim, um Lukács muito mais “gramsciano”, aberto para

o conjuntural/contingente do que normalmente se imagina. O Augenblick de

Lukács está também surpreendentemente próximo do que Alain Badiou

chama de Evento: uma intervenção que não pode ser entendida com base em

suas “condições objetivas” preexistentes. O ponto principal do argumento

de Lukács é rejeitar a redução do ato às suas “circunstâncias históricas”.

Não há “condições objetivas” neutras, i.e. (em hegelês), todos os pressupostos

estão minimamente postos.

Característico disso é a enunciação “objetivista” por Lukács dos

fatores que levaram ao fracasso da revolução húngara de 1919: os oficiais

traiçoeiros, o bloqueio externo que causou a fome… Apesar desses serem

indubitavelmente fatores que desempenharam um papel decisivo na derrota

da revolução, é equivocado considerá-los como a matéria-prima decisiva,

sem levar em conta a maneira como foram “mediados” por inúmero

fatores políticos subjetivos. Por que, então, no caso do bloqueio ainda mais

intenso à Rússia soviética, não se sucumbiu aos ataques imperialistas e

contra-revolucionários? Porque na Rússia, o Partido Bolchevique esclareceu

as massas que o bloqueio era fruto da ação de forças contra-revolucionárias

estrangeiras e domésticas. Na Hungria, porém, o Partido não era

suficientemente forte, o que fez com que as massas sucumbissem à propaganda

anticomunista que afirmava que o bloqueio era o resultado da

natureza “antidemocrática” do regime – sugerindo que com o retorno à

democracia a ajuda estrangeira não pararia de afluir… Traição dos oficiais?

Sim, mas por que a mesma traição não levou às mesmas consequências catastróficas

na Rússia soviética? E quando traidores foram descobertos por

que não foi possível substituí-los por quadros confiáveis? Porque o Partido

Comunista Húngaro não era suficientemente forte e ativo, ao passo que o

Partido Bolchevique russo mobilizou os soldados que estavam dispostos a

defender a revolução. Claro, pode-se sempre afirmar que a fraqueza do

Partido Comunista Húngaro era um componente “objetivo” da situação

social; contudo, por trás desse “fato”, há ainda outras decisões e atos subjetivos,

o que faz com que nunca seja possível atingir o nível zero de um

pretenso estado de coisas puramente “objetivo”. O ponto realmente importante

não é a objetividade, mas a “totalidade”, entendida como processo

global de “mediação” entre o aspecto subjetivo e o objetivo. Em outras

palavras, o Ato nunca pode ser reduzido ao reflexo de condições objetivas.

Pegando um exemplo de outro campo, a maneira que a ideologia

“põe seus pressupostos” é também facilmente percebido na (pseudo)

explicação sobre a crescente aceitação da ideologia nazista durante os anos

vinte, segundo a qual os nazistas manipulavam os medos e as ansiedades

da classe média gerados pela crise econômica e as mudanças sociais. O

problema com essa explicação é que ela não percebe como está implícita

nela uma auto-referência circular. Sim, os nazistas certamente manipularam

medos e ansiedades, todavia, esses medos e ansiedades refletiam, de

antemão, uma certa perspectiva ideológica e não correspondiam a fatos

pré-ideológicos. Em outras palavras, a ideologia nazista ela mesmo também

gerou “ansiedades e medos”, para a qual propôs soluções.

Podemos agora voltar para nosso “silogismo” triplo e procurar

descobrir onde encontra-se seu erro: na própria oposição entre as suas duas

primeiras formas. Claro que Lukács opõe-se ao “espontaneísmo”, que

defende a organização autônoma das massas trabalhadoras em movimentos

de base contra a ditadura imposta por burocratas do Partido. Mas ele também

opõe-se ao conceito pseudoleninista (na verdade, de Kaustky) de que

a classe trabalhadora “empírica” pode, deixada a ela mesma, apenas atingir

o nível sindicalista de consciência, e que a única maneira dela passar a

ser o sujeito revolucionário é importando sua consciência por meio de intelectuais

que, depois de compreenderem “cientificamente” as necessidades

“objetivas” da passagem do capitalismo para o socialismo, “esclarecem a

classe trabalhadora da missão implícita em sua posição social objetiva”. No

entanto, é aqui que encontramos a abusiva “identidade dos opostos”

dialética na sua forma mais pura. O problema com essa oposição não é que

os dois pólos estão muito cruamente opostos e que a verdade se encontraria

em algum lugar presente entre eles, na “mediação dialética” (a consciência

de classe que surgiria da “interação” entre a consciência espontânea da

classe trabalhadora e o trabalho educativo do Partido). Na verdade, o problema

está na idéia de que a classe trabalhadora tem potencialmente a

capacidade de atingir a consciência de classe adequada (e, conseqüentemente,

que o Partido apenas desempenha um papel menor, “maiêutico”, de

possibilitar aos trabalhadores empíricos realizarem seu potencial), já que,

assim, se legitima o exercício da ditadura do Partido sobre os “trabalhadores,

baseada na sua compreensão correta de quais são seus verdadeiros

potenciais e/ou seus interesses a longo prazo”. Em poucas palavras, Lukács

está apenas aplicando à oposição falsa entre “espontaneísmo” e dominação

externa do Partido a identificação especulativa de Hegel dos “potenciais

internos” de um indivíduo na sua relação com seus educadores. Dizer que

o indivíduo precisa possuir “potencial próprio” para se tornar um grande

músico equivale a dizer que esses potenciais devem estar, de antemão, presentes

no educador que, por meio de influência externa, estimulará o indivíduo

a realizar seu potencial.

O paradoxo, então, é que quanto mais insistimos em como uma

postura revolucionária traduz a verdadeira “natureza” da classe trabalhadora,

mais somos levados a exercer pressão externa sobre a classe trabalhadora

“empírica”, a fim de que ela realize seu potencial. Em outras

palavras, a “verdade” sobre a identidade imediata dos dois primeiros opostos

é, como vimos, a terceira forma, a mediação stalinista. Por quê? Porque

essa identidade imediata exclui qualquer espaço para o ato propriamente

dito. Se a consciência de classe aparece “espontaneamente”, como a realização

do potencial interno presente na própria situação objetiva da classe

trabalhadora, nenhum ato ocorreria, a não ser a conversão puramente formal

do em-si para o para-si. O que corresponde ao gesto de descortinar o

que sempre esteve lá. Se a consciência de classe propriamente revolucionária

deve ser “importada” pelo Partido, então nos restaria a presença de

intelectuais “neutros”, que compreenderiam a necessidade histórica “objetiva”

(sem intervir diretamente nela). Conseqüentemente, a utilização da

classe trabalhadora, manipulada de maneira instrumental, como ferramenta

para realizar a necessidade já presente na sua situação, não deixaria nenhum

espaço para o ato propriamente dito.

Hoje em dia, época do triunfo mundial da democracia, quando

ninguém de esquerda (com exceções notáveis, como a de Alain Badiou)

ousa questionar as premissas da democracia política, é mais importante do

que nunca ter em mente o comentário de Lukács, proferido na sua polêmica

contra a crítica de Rosa Luxemburgo a Lenin, de como a atitude verdadeiramente

revolucionária de aceitar a contingência radical da Augenblick

não deveria levar também à aceitação da oposição padrão entre a

“democracia”, a “ditadura” ou o “terror”. Se deixarmos de lado a oposição

entre o universalismo liberal-democrático e o fundamentalismo étnico/religioso,

para o qual a mídia insiste em chamar a atenção, o primeiro passo é

reconhecer a existência do que se pode chamar de “fundamentalismo

democrático”: a ontologização da Democracia numa referência universal

despolitizada que não deve ser (re)negociada com base em disputas político-

ideológicas pela hegemonia.

A democracia como forma de política estatal é mesmo inerentemente

“popperiana”. O critério último da democracia está na “falseabilidade”

do regime, i.e. que um procedimento público claramente definido (o

voto popular) pode determinar se ele perdeu legitimidade e deve ser substituído

por uma nova força política. O ponto não é tanto a “justiça” do procedimento,

mas o fato de que todos os envolvidos aceitam antecipadamente,

e sem dar margem a dúvidas, como ele funcionará, independente-

mente da sua “justiça”. No procedimento padrão de chantagem ideológica,

os defensores da democracia alegam que, a partir do momento que abandonamos

essa característica, entramos numa esfera “totalitária”, em que o

regime “não é falsificável”, i.e., ele evita a situação de “falsificação” unívoca.

Independentemente do que acontecer, mesmo que milhares se manifestem

contra o regime, ele continuará a insistir que é legítimo, que representa

os verdadeiros interesses do povo e que o “verdadeiro” povo o

apóia… Deveríamos, aqui, rejeitar essa chantagem (como Lukács faz em

relação a Rosa Luxemburgo). Não há nenhuma “regra (procedimento)

democrático” que estamos, de antemão, proibidos de violar. A política revolucionária

não diz respeito a “opiniões”, mas à verdade que faz com que

freqüentemente tenha-se que não levar em conta a “opinião da maioria” e

impor a vontade revolucionária sobre ela.

Se, então, a principal tarefa da esquerda atual for, afinal de contas,

fazer a passagem de História e consciência de classe a Dialética do

esclarecimento, mas na direção oposta do que é normalmente imaginado?

A questão não é de “aprofundar” Lukács de acordo com as “exigências dos

novos tempos” (o grande slogan de todo o revisionismo oportunista,

incluindo o atual Novo Trabalhismo), mas de repetir o Evento em novas

condições. Somos ainda capazes de nos imaginar num momento histórico

onde termos como “traidor revisionista” ainda não faziam parte do mantra

stalinista, mas expressavam uma postura verdadeiramente engajada? Em

outras palavras, a questão a ser levantada hoje sobre o Evento único do

Lukács marxista dos primeiros tempos não é: “Como esse trabalho fica em

relação à constelação atual? Ele ainda está vivo?”, mas, ao contrário, o de

parafrasear a conhecida inversão de Adorno da insolente pergunta historicista

de Croce sobre “o que está vivo e o que está morto na dialética de

Hegel” (o título de seu principal trabalho)7: como é que nós nos encontramos

diante de Lukács? Ainda somos capazes de realizar o ato descrito

por Lukács? Qual ator social pode, com base em seu radical deslocamento,

realizá-lo hoje em dia?

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Notas:

SLAVOJ ZIZEK é pesquisador da Universidade de Liubliana

(Eslovênia), e autor de vários livros de filosofia, política e psicanálise.

* “From History and Class Consciousness to The Dialectic of Enlightenment… and Back”.

New German Critique81: 107-123, 2000. Agradecemos aos editores da New German Critique  e a Slavoj Zizek pela gentil permissão para publicar este artigo. Tradução de Bernardo Ricupero.

1 Martin Heidegger, Sein und Zeit, Tuuebingen: Max Niemeyer, 1963, p. 437.

2  Paradoxalmente, da perspectiva de cada um desses dois marxistas, Althusser e Lukács, o outro aparece como o exemplo mais acabado do stalinista: para Althusser e os pós-althusserianos,  a noção de Lukács de que o Partido Comunista equivale praticamente ao sujeito  hegeliano legitima o stalinismo; para os discípulos de Lukács, o “antihumanismo teórico” do  estruturalista Althusser e sua total rejeição da problemática da alienação e da reificação, combinam-se à desconsideração stalinista pela liberdade humana. Ao mesmo tempo que este não é o lugar para tratar detalhadamente desse confronto, ele enfatiza como cada um dos dois marxistas articula uma problemática fundamental, que não faz parte do horizonte do oponente: em Althusser, a noção dos aparelhos ideológicos do Estado como a tradução material da ideologia, e em Lukács, a noção do ato histórico. Além do mais, evidentemente não é fácil realizar uma “síntese” entre essas duas posições mutuamente opostas – é possível, assim, que a melhor maneira de proceder seja usando como referência alternativa o outro grande fundador

do marxismo ocidental, Antonio Gramsci.

3 Ver: Evert van der Zweerde, Soviet historiography of philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1997.

4 Paradigmática é a lendária história da fracassada participação de Iljenkov num ongresso

mundial de filosofia realizado nos EUA em meados dos anos sessenta. Iljenkov já tinha o visto e estava pronto para pegar o avião, quando sua viagem foi cancelada porque seu texto para o congresso, “Do ponto de vista leninista”, que tinha antes apresentado aos ideólogos do Partido, não os agradou. Isso não se deu graças a seu conteúdo (inteiramente aceitável), mas simplesmente por causa de seu estilo, da maneira engajada em que foi escrito. Já a frase de abertura (“É minha avaliação pessoal que…”) era proferida num tom pouco aceitável.

5 Ver: Theodor W. Adorno, “Erpresste Versohnung,” Noten zur literatur, Frankfurt/Main:

Suhrkamp, 1971, p. 278.

6 Ver, como exemplo representativo, Andrew Arato e Jean L. Cohen, Civil society and political theory, Cambridge: MIT, 1994.

7 Ver: Adorno, Drei Studien zu Hegel, Frankfurt: Suhrkamp, 1963, p. 13.

Fonte: Antivalor

Contato:
antivalor@bol.com.br

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O Poder nu*

Por Bertrand Russell

*Texto escrito em português clássico

À MEDIDA que a crença e os hábitos que mantiveram o poder tradicional
decaem, vão cedendo gradualmente lugar ou ao poder baseado em alguma crença
nova, ou ao poder "nu", isto é, à espécie de poder que não implica aquiescência
alguma por parte do súdito. Êsse é o poder do carniceiro sôbre o rebanho, de um
exército invasor sôbre uma nação vencida e da polícia sôbre os conspiradores
desmascarados. O poder da Igreja Católica sôbre os católicos é tradicional, mas o seu
poder sôbre os hereges que são perseguidos é um poder nu. O poder do Estado sôbre
os cidadãos leais é tradicional, mas o seu poder sôbre os rebeldes é um poder nu. As
organizações que mantêm o poder durante muito tempo passam, cm regra, por três
fases: primeira, a da crença fanática, mas não tradicional, que conduz à conquista;
depois, a do assentimento geral ao novo poder, que se torna ràpidamente tradicional
e, finalmente, aquela em que o poder, sendo usado agora contra todos os que rejeitam
a tradição, se torna de novo nu. O caráter de uma organização sofre grandes
transformações ao passar por essas fases.
O poder conferido pela conquista militar deixa de ser, depois de um período
maior ou menor de tempo, meramente militar. Tôdas as províncias conquistadas
pelos romanos, exceto a Judéia, se tornaram logo leais ao Império, deixando de sentir
qualquer desejo de independência. Na Ásia e na África, os países cristãos
conquistados pelos maometanos submeteram-se, com pouca relutância, a seus novos
governantes. O País de Gales submeteu-se, aos poucos, ao domínio inglês, ao passo
que a Irlanda não o fêz. Depois que os hereges albigenses foram sobrepujados pela
fôrça militar, seus descendentes se submeteram tanto interior como exteriormente à
autoridade da Igreja. A conquista normanda produziu, na Inglaterra, uma família real
que, depois de algum tempo, foi considerada como possuidora de um Direito Divino
ao trono. A conquista militar só é estável quando seguida da conquista psicológica,
mas os casos em que isso ocorreu são muito numerosos.
O poder nu, no govêrno interno de uma comunidade não recentemente
submetida a uma conquista estrangeira, nasce de duas circunstâncias diferentes:
primeiro, onde duas ou mais doutrinas fanáticas lutam pelo predomínio; segundo,
onde tôdas as crenças tradicionais decaíram, sem que fôssem substituídas por novas
crenças, de modo que não há limites para a ambição pessoal. O primeiro caso não é
puro, já que os adeptos de um credo predominante não estão sujeitos ao poder nu.
Examinarei êste ponto no capítulo seguinte, ao tratar do poder revolucionário.
Limitar-me-ei, por ora, ao segundo caso.
A definição do poder nu é psicológica, sendo que um govêrno pode agir a
descoberto em relação a alguns de seus súditos e não em relação a outros. Os
exemplos mais cabais de que tenho notícia, à parte os de conquista estrangeira, são os
das últimas tiranias gregas e os de alguns dos Estados italianos da Renascença.
A história grega nos fornece, como num laboratório, um grande número de
experimentos em pequena escala que são de grande interêsse para os que estudam o
poder político. Os governos monárquicos hereditários da época homérica chegaram
ao fim antes do comêço dos registros históricos, sendo sucedidos por uma
aristocracia hereditária. Na altura em que começa a história digna de crédito das
cidades gregas, havia uma luta entre a aristocracia e a tirania. Com exceção de
Esparta, a tirania foi vitoriosa, durante certo tempo, em tôda a parte, mais foi
substituída pela democracia ou por uma restauração da aristocracia, às vêzes sob a
forma de plutocracia. Esta primeira época de tirania abrangeu uma grande parte dos
séculos VII e VI A. C. Não foi uma época de poder nu, como ocorreu no período
posterior, de que me ocuparei de modo especial. Não obstante, preparou o caminho
para a desordem e a violência das épocas posteriores.
A palavra "tirano" não implicava, originàriamente, quaisquer qualidades más
no governante, mas apenas ausência de um título legal ou tradicional. Muitos dos
primeiros tiranos governaram sabiamente, com o assentimento da maioria de seus
súditos. Seus únicos inimigos implacáveis, regra geral, eram os aristocratas. A
maioria dos primitivos tiranos era constituída de homens muito ricos, que
compravam o poder e se mantinham mais devido a meios econômicos do que
militares. Devem ser comparados mais aos Medieis que aos ditadores de nossos dias.
Os primeiros tempos de tirania foram aqueles em que a cunhagem de moeda
passou a ser usada, sendo que isso teve o mesmo efeito, quanto ao aumento do poder
dos homens ricos, que o crédito e o papel-moeda em tempos recentes. Tem-se
afirmado – embora eu não seja competente para julgar se com razão ou não – que a
introdução da moeda estava ligada ao aparecimento da tirania; a posse de minas de
prata, certamente, era uma ajuda para o homem que ambicionava tornar-se tirano. O
uso do dinheiro, quando recente, perturba profundamente os costumes antigos, como
se poderá ver em regiões da África que não se acham há muito sob domínio europeu.
Nos séculos VII e VI antes de Cristo, tal efeito foi aumentar o poder do comércio e
diminuir o das aristocracias territoriais. Antes do domínio da Ásia Menor pelos
persas, as guerras, no mundo grego, eram poucas e sem importância, sendo que
apenas uma pequena parte do trabalho cie produção era executada por escravos. As
circunstâncias eram ideais para o poder econômico, que debilitou o domínio da
tradição do mesmo modo que o industrialismo a fêz no século XIX.
Enquanto houve possibilidade de que todos fôssem prósperos, o
enfraquecimento da tradição foi mais benéfico do que prejudicial. Produziu, entre os
gregos, um progresso mais rápido da civilização do que jamais ocorrera antes -com a
possível exceção dos quatro últimos séculos. A liberdade da arte, das ciências e da
filosofia gregas é a de uma época próspera, que não sofreu os entraves da
superstição. Mas a estrutura social não possuia o vigor requerido para resistir ao
infortúnio, e os indivíduos não tinham os padrões morais necessários para evitar
crimes desastrosos, quando a virtude não mais conduzia ao êxito. Uma longa série de
guerras diminuiu a população livre e aumentou o número de escravos. A própria
Grécia caiu, finalmente, sob o domínio da Macedônia, enquanto que a Sicília
helênica, apesar de revoluções cada vez mais violentas, guerras civis e tiranias,
continuou a lutar contra o poder de Cartago e, depois, de Roma. As tiranias de
Siracusa merecem a nossa atenção, tanto por apresentar um dos exemplos mais
perfeitos de poder "nu", como por haver influenciado Platão, que teve uma disputa
com o velho Dionísio e procurou fazer com que o mais jovem se tornasse seu
discípulo. As opiniões dos gregos posteriores, de tôdas as épocas subseqüentes, sôbre
os tiranos gregos em geral, foram grandemente influenciadas pelos contactos
infortunados dos filósofos com Dionísio o Antigo e seus sucessores nos maus
governos siracusanos.
"A maquinaria da fraude – diz Grote – pela qual o povo era enganado e levado
à submissão temporária, como um prelúdio da maquinaria da fôrça, pela qual a
submissão deveria ser perpetuada sem o seu assentimento, era coisa corriqueira entre
os usurpadores gregos". Até que ponto as primitivas tiranias eram perpetuadas sem o
assentimento popular, é coisa sôbre a qual pode haver dúvidas, mas, quanto ao que se
refere às tiranias posteriores, isso é, sem dúvida, verdadeiro. Tomemos, por exemplo,
a descrição de Grote, baseada em Diodoro, do momento crítico da ascensão de
Dionísio, o Antigo. As armas de Siracusa haviam sofrido derrotas e desgraças sob
um regime mais ou menos democrático, e Dionísio, o líder escolhido pelos campeões
de uma guerra vigorosa, exigia a punição dos generais vencidos.
"Em meio do silêncio e da inquietude que reinavam na Assembléia de
Siracusa, Dionísio foi o primeiro que se ergueu para dirigir-lhe a palavra. Discorreu
longamente sôbre um tema apropriado tanto para o temperamento de seus ouvintes
como para seus próprios propósitos. Denunciou com veemência os generais que,
segundo êle, haviam traído a segurança de Siracusa ante os cartagineses – apontandoos
como culpados da ruína de Agrigento e do perigo iminente em que todos se
achavam. Expôs seus crimes, reais ou supostos, não apenas com acrimônia e
abundância de pormenores, mas, também, com uma violência feroz, ultrapassando
todos os limites de um debate legítimo, procurando condená-los a um assassínio
ilegal, como a morte dos generais ocorrida recentemente em Agrigento. "Tendes aí os
traidores! Não espereis um julgamento ou um veredicto legais, mas lançai mão dêles
incontinenti infligindo-lhes uma justiça sumária". Essa exortação, brutal, era uma
ofensa não só contra a lei como contra a ordem parlamentar. Os magistrados que
presidiam a Assembléia censuraram Dionísio como perturbador da ordem e o
multaram, como a lei lhes permitia. Mas seus partidários acorreram, ruidosos, em seu
apoio. Filisto não só pagou imediatamente a multa, como declarou, em público, que
continuaria pagando, durante todo o dia, as multas semelhantes que pudessem ser
impostas – e incitou Dionísio a que persistisse em tal linguagem, que lhe parecia
apropriada. O que começara como uma ilegalidade, agravava-se agora com um
desafio aberto à lei. No entanto, tão debilitada se encontrava a autoridade dos
magistrados, e era tão veemente o alarido que se erguia contra êles, na situação em
que se achava a cidade, que não lhes era possível castigar ou fazer com que o orador
se calasse. Dionísio prosseguiu em sua arenga em tom ainda mais inflamado, não só
acusando os generais de haver traído, corruptamente, Agrigento, mas, também,
denunciando os cidadãos mais destacados e ricos como oligarcas que exerciam um
predomínio tirânico, que tratavam a maioria com desdém e se beneficiavam com os
infortúnios da cidade. Siracusa – afirmou -jamais poderia ser salva, a menos que
homens de caráter inteiramente diferente fossem investidos de autoridade – homens,
não escolhidos pela riqueza ou par sua situação, mas de nascimento humilde,
pertencentes ao povo pela sua posição e bondosos, em sua conduta, pela consciência
de sua própria fraqueza".
E, assim, se tornou tirano; mas a história não se refere a nenhuma vantagem
que os pobres e os humildes hajam tido com isso. Confiscou, é verdade, as
propriedades dos ricos, mas foi aos seus guardas pessoais que êle as deu. Sua
popularidade logo se dissipou, mas não o seu poder. Poucas páginas adiante,
deparamos com Grote a dizer:
"Sentindo mais do que nunca que o seu domínio repugnava aos siracusanos, e
que se baseava apenas na fôrça nua e crua, cercou-se de precauções provàvelmente
mais fortes que as acumuladas por qualquer outro déspota grego".
A história grega é peculiar quanto ao fato de que, exceto em Esparta, a
influência da tradição era extraordinàriamente fraca na Grécia. Ademais, quase não
havia moralidade política. Heródoto afirma que nenhum espartano sabia resistir a um
subôrno. Em tôda a Grécia, era inútil fazer-se objeção a um político sob alegação de
que êle recebia subornos do rei da Pérsia, pois seus adversários também o faziam,
quando se tornavam suficientemente poderosos para que valesse a pena comprá-los.
O resultado disso era uma luta desordenada pelo poder pessoal, conduzida pela
corrupção, arruaças e assassínios. Neste assunto, os amigos de Sócrates e Platão
estavam entre os mais inescrupulosos. O resultado final, como se poderia prever, foi
a subjugação por potências estrangeiras.
Era costume lamentar-se a perda da independência grega, pensando-se nos
gregos como se fôssem todos semelhantes a Solon e Sócrates. Quão pouca razão
havia para se deplorar a vitória de Roma é coisa que se pode ver pela história da
Sicília helênica. Não conheço melhor exemplo do poder nu do que a carreira de
Agátocles, contemporâneo de Alexandre o Grande, que viveu de 361 a 289 A. C. e
foi tirano de Siracusa durante os últimos vinte anos de sua vida.
Siracusa era a maior das cidades gregas e, talvez, a maior cidade do
Mediterrâneo. Sua única rival era Cartago, com a qual estava sempre em guerra,
salvo durante curtos períodos, depois de alguma séria derrota sofrida por uma das
combatentes. As outras cidades gregas da Sicília colocavam-se ora do lado de
Siracusa, ora de Cartago, segundo a maré da política partidária. Em cada cidade, os
ricos eram a favor da oligarquia, e, os pobres, da democracia. Quando os partidários
da democracia saíam vitoriosos, seu líder, habitualmente, conseguia converter-se em
tirano. Muitos dos que pertenciam ao partido derrotado seguiam para o exílio e
uniam-se aos exércitos das cidades em que o seu partido estava no poder. Mas o
grosso cias fôrças armadas consistia de mercenários, na maioria não helênicos.
Agátocles era um homem de origem humilde, filho de um oleiro. Devido à sua
beleza, tornou-se o favorito de um rico siracusano chamado Demas, que lhe deixou
todo 0 seu dinheiro e com cuja viuva êle casou. Tendo-se distinguido na guerra,
pensava-se que éle aspirasse à tirania. Foi, por conseguinte, exilado, transmitindo-se
ordens para que fôsse assassinado durante sua viagem. Mas êle, prevendo tal coisa,
mudou de roupa com um pobre homem, que foi morto, por equívoco, pelos
assassinos mercenários. Formou, então, um exército no interior da Sicília, o qual
atemorizou tanto os siracusanos que êstes fizeram um tratado com êle: foi readmitido
e jurou, no templo de Ceres, que nada faria em prejuízo da democracia.
O governo de Siracusa parece ter sido, nessa época, uma mistura de
democracia e oligarquia. Havia um conselho constituído de seiscentos membros,
escolhidos entre os homens mais ricos . Agátocles esposou a causa dos pobres contra
a dos oligarcas. No decurso destes últimos ele sublevou os soldados e fez com que
os quarenta fossem assasinados, dizendo que havia uma conspiração contra a sua
pessoa. Conduziu, depois, o exército para a cidade, ordenando-lhe que saqueasse
todos os seiscentos. Os soldados assim o fizeram, massacrando os cidadãos que
saíam de suas casas para ver o que estava ocorrendo. No fim um grande número de
pessoas foi assassinado pelos soldados que se entregavam à pilhagem. A respeito, diz
Diodoro: "Não, não havia segurança para os que fugiam para os templos, sob o
abrigo dos deuses; a piedade para com os deuses, pelo contrário, foi esmagada e
calcada aos pés pela crueldade dos homens. Os gregos lutavam contra os gregos em
seu próprio país, os parentes contra os parentes em tempo de paz, sem consideração
alguma pelas leis da natureza, ou pelas ligas, ou pela reverência devida aos deuses –
sendo tudo isso audaciosamente cometido. Ante uma tal situação, não apenas os
amigos, mas os próprios inimigos, bem como todos os homens sensatos, não podiam
deixar de sentir piedade pela miserável condição dêsse povo infortunado".
Os partidários de Agátocles passavam o dia entregues à matança e, à noite,
voltavam a atenção para as mulheres.
Depois de dois dias de massacre, Agátocles retiniu os prisioneiros e os matou a
todos, com exceção de seu amigo Dinocrates. Reuniu, depois, a assembléia, acusou
os oligarcas e disse que expurgaria a cidade de todos os amigos da monarquia, e que
êle próprio iria retirar-se para a vida privada. Despiu, pois, o seu uniforme e vestiu
um traje à paisana. Mas os que haviam roubado sob a sua chefia desejavam que êle
se conservasse no poder, e foi eleito único general. "Muitos dos mais pobres, dos que
tinham dívidas, ficaram muito satisfeitos com essa revolução", pois Agátocles
prometeu a remissão das dívidas e a repartição das terras entre os pobres. Depois
disto, agiu com moderação durante algum tempo.
Na guerra, Agátocles era engenhoso e bravo, mas temerá -rio. Houve um
momento em que parecia que os cartagineses acabariam completamente vitoriosos:
assediavam Siracusa e sua armada ocupava o pôrto. Mas Agátocles, com um grande
exército, partiu para a África, onde queimou seus navios, para evitar que êstes
caissem nas mãos dos cartagineses. Temendo uma revolta em sua ausência, levou
consigo crianças como reféns. Depois de algum tempo, seu irmão, que o representava
em Siracusa, exilou oito mil adversários políticos, que contavam com a amizade dos
cartagineses. Na África, Agátocles foi, a princípio, surpreendentemente bem
sucedido: capturou Túnis e assediou Cartago, cujo govêrno ficou alarmado,
ordenando que se realizassem cerimônias propiciatórias no templo de Moloc.
Verificou-se que os aristocratas, cujos filhos deviam ser sacrificados ao deus, haviam
adquirido o hábito de comprar crianças pobres para substituílos. Tal prática foi,
então, severamente reprimida, pois se sabia que agradava mais a Moloc o sacrifício
de crianças aristocráticas. Depois desta reforma, a sorte dos cartagineses começou a
melhorar.
Agátocles, sentindo necessidade de reforços, enviou emissários a Cirene, que
pertencia então aos Ptolomeus e era governada por Ophelas, um dos capitães de
Alexandre. Os emissários tinham ordens de dizer que, com a ajuda de Ophelas,
Cartago poderia ser destruída; que Agátocles desejava apenas estar seguro na Sicília,
pois não tinha ambições na África – e que tôdas as conquistas que fizessem juntos na
África pertenceriam a Ophelas. Tentado por estas ofertas, Ophelas marchou, através
do deserto, com o seu exército e, após grandes dificuldades, uniu-se a Agá tocles.
Sem perda de tempo, Agátocles assassinou-o, declarando a seu exército que a única
esperança de salvação consistia em colocar-se sob o comando do assassino de seu excomandante.
Sitiou, a seguir, Utica, onde, chegando inesperadamente, capturou trezentos
prisioneiras no campo de batalha, colocando-os diante de suas máquinas de assédio,
de modo que os soldados de Utica, para defender-se, tiveram de matar seus próprios
concidadãos. Embora bem sucedido nessa empresa, sua situação era difícil,
sobretudo porque tinha razões para temer que o seu filho Archagathus estivesse
suscitando descontentamento no exército. De modo que fugiu secretamente de volta à
Sicília, e o exército, furioso com a sua deserção, assassinou não só Archagathus
como o seu outro filho. Isto o enfureceu tanto, que matou todos os homens, mulheres
e crianças de Siracusa que tivessem parentesco com qualquer soldado do exército
revoltoso.
Seu poder na Sicília, durante algum tempo, sobreviveu a tôdas essas
vicissitudes. Capturou Aegesta, matou todos os indivíduos do sexo masculino mais
pobres da cidade e torturou os ricos até que revelassem onde suas riquezas estavam
escondidas. As jovens e as crianças foram por êle vendidas, como escravas, aos
bruttii, no continente.
Sua vida familiar, lamento dizê-lo, não era inteiramente feliz. Sua espôsa teve
um caso amoroso com o seu filho, um de seus dois netos assassinou o outro,
induzindo depois um criado do velho tirano a envenenar os palitos do avô. O último
ato de Agátocles, quando viu que ia morrer, foi convocar o Senado e exigir vingança
contra o neto. Mas suas gengivas, devido ao veneno, tinham-se tornado tão doloridas
que não podia falar. Os cidadãos sublevaram-se, levaram-no apressadamente à pira
funerária antes que êle estivesse morto, seus bens foram confiscados e, segundo nos
dizem, a democracia foi restaurada.
A Itália renascentista apresenta um paralelo que se aproxima muito da Grécia
antiga, mas a confusão é ainda maior. Havia repúblicas comerciais oligárquicas,
tiranias segundo o padrão grego, principados de origem feudal e, além disso tudo, os
Estados da Igreja. O Papa, exceto na Itália, impunha respeito, mas seus filhos não o
faziam, e César Bórgia teve de lançar mão do poder nu.
César Bórgia e seu pai, Alexandre VI, são importantes não devido apenas às
suas pessoas, mas por terem inspirado Maquiavel. Um incidente da vida de ambos,
c.rrientado por Creighton, servirá para dar um exemplo da época em que viveram. Os
Colonnas e os Orsinis haviam sido a desgraça dos Papas durante séculos; os
Colonnas já haviam caído, mas os Orsinis permaneciam. Alexandre VI fêz um
tratado com êles, convidando o seu chefe, o Cardeal Orsiní, para o Vaticano, ao ter
notícia de que César aprisionara, traiçoeiramente, dois Orsinis importantes. O
Cardeal Orsini foi prêso logo que chegou à presença do Papa; sua mãe pagou ao Papa
dois mil ducados pelo privilégio de enviar alimentos ao filho, e sua amante
presenteou Sua Santidade com uma pérola de alto valor, que êle cobiçava. Não
obstante, o Cardeal Orsini morreu na prisão – por haver bebido, segundo se disse,
vinho evenenado que lhe fôra servido por ordem de Alexandre VI. Os comentários de
Creighton sôbre esta ocorrência ilustram o caráter de um regime de poder nu:
"É surpreendente que essa ação traiçoeira não haja despertado nenhum
protesto, sendo, pelo contrário, tão bem sucedida; mas, n a política artificial da Itália,
tudo dependia da habilidade dos que se entregavam a tal jôgo. Os condottieri
representavam apenas a si próprios, e quando eram afastados, por quaisquer meios,
embora traiçoeiros, não restava nada. Não havia partido algum, nem qualquer
interêsse, que se sentisse prejudicado pela queda dos Orsinis e dos Vitellozos. Os
exércitos dos condottieri eram formidáveis enquanto seguiam os seus generais;
quando os generais eram afastados, os soldados se dispersavam e entravam para o
serviço de outros . . . A maioria dos cidadãos admirava a consumada frieza de César
quanto a esta questão… Nenhum prejuízo fôra causado à moralidade corrente… Quase
todos, na Itália, aceitavam como suficiente a observação de César a Maquiavel: "É
bom enganar aqueles que se revelaram mestres na traição". A conduta de César foi
julgada pelo seu êxito".
Na Itália renascentista, como na Grécia antiga, um nível muito elevado de
civilização se unia a um nível moral muito baixo: ambas as épocas revelaram as
maiores alturas do gênio e as maiores profundidades da canalhice e, em ambas, os
canalhas e os homens de gênio não são, de modo algum, antagônicos uns aos outros.
Leonardo construiu fortificações para César Bórgia; alguns dos discípulos de
Sócrates se achavam entre os piores dos trinta tiranos; os discípulos de Platão
andavam metidos em ações vergonhosas em Siracusa, e Aristóteles casou com a neta
de um tirano. Em ambas as idades, depois que a arte, a literatura e o assassínio
floresceram, lado a lado, durante cêrca de cento e cinqüenta anos, foram extintos
juntos, por nações menos civilizadas, mas mais coesas, do Ocidente e do Norte. Em
ambos os casos, a perda da independência política não implicava apenas decadência
cultural, mas perda da supremacia comercial, seguida de um empobrecimento
catastrófico.
Os períodos de poder nu são, habitualmente, breves. Terminam, em geral, de
um ou de outro modo, entre três modos diversos. O primeiro é a conquista
estrangeira, como nos casos da Grécia e da Itália que já foram por nós examinados. O
segundo é o estabelecimento de uma ditadura estável, que logo se torna tradicional.
(Disto, o exemplo mais notável é o império de Augusto, depois dos períodos das
guerras civis, de Mario até a derrota de Antonio.) O terceiro é o advento de uma nova
religião, empregando-se a palavra em sua acepção mais ampla. O exemplo mais
óbvio disso é a maneira pela qual Maomé uniu as tribos da Arábia, anteriormente
inimigas. O reinado da fôrça nua nas relações internacionais, depois da Grande
Guerra, poderia ter terminado com a adoção do comunismo por tôda a Europa, se a
Rússia dispusesse, na ocasião, de um excedente exportável de víveres.
Onde o poder é nu, não só internacionalmente, mas no govêrno interno de
Estados separados, os métodos de adquirir poder são muito mais implacáveis do que
em outras partes. Êste tema foi tratado, de uma vez por tôdas, por Maquiavel.
Tomemos, por exemplo, o seu relato laudatório das medidas adotadas por César
Bórgia a fim de proteger-se no caso da morte de Alexandre VI:
"Êle decidiu agir de quatro maneiras. Primeiro, exterminando as famílias dos
senhores a quem havia espoliado, a fim de afastar êsse pretexto do Papa. Segundo,
conquistando para si todos os grandes senhores de Roma, para poder dobrar o Papa
com a sua ajuda. Terceiro, convertendo o colégio mais para o seu lado. Quarto,
adquirindo uma tal quantidade de poder, antes que o Papa morresse, que lhe
permitisse resistir, com suas próprias medidas, ao primeiro choque. Dessas quatro,
tinha realizado três, por ocasião da morte de Alexandre. Pois matou tantos
cavalheiros espoliados quantos foram aqueles sôbre os quais conseguiu deitara mão,
sendo que poucos escaparam", etc.
O segundo, terceiro e quarto dêsses métodos poderiam ser empregados a
qualquer tempo, mas o primeiro chocaria a opinião pública num período de govêrno
ordenado. Um Primeiro Ministro inglês poderia esperar consolidar a sua
posição mediante o assassínio do líder da oposição. Mas onde o poder é nu, tais
restrições morais se tornam inoperantes.
O poder é nu quando os seus súditos o respeitam sòmente porque se trata de
um poder, e não por qualquer outra razão. Assim, uma forma de poder que tenha sido
tradicional se torna nua logo que a tradição deixa de ser aceita. Segue-se daí que os
períodos de pensamento livre e de crítica vigorosa tendem a transformar-se em
períodos de poder nu. Foi assim tanto na Grécia como na Itália, durante a
Renascença. A teoria adequada ao poder nu foi exposta por Platão no primeiro livro
da República, pela bôca de Trasímaco, que ficou agastado com Sócrates devido às
suas amáveis tentativas para encontrar uma definição ética de justiça. "Segundo a
minha doutrina – diz Trasímaco – a justiça é simplesmente o interêsse do mais forte".
E prossegue:
"Cada govêrno arquiteta suas leis de modo a servir seus próprios interesses:
uma democracia, fazendo leis democráticas; um autocrata, leis despóticas, e assim
por diante. Ora, mediante êsse procedimento, tais governos declaram que o que é de
seu interêsse é justamente do interêsse de seus súditos; e, quem quer que se afaste
disso, é por êles castigado, sob acusação de ilegalidade e injustiça. Portanto, meu
bom senhor, o que quero dizer é que, em tôdas as cidades, a mesma coisa, isto é, o
interêsse do govêrno estabelecido, é justa. A fôrça superior, segundo presumo, deve
encontrarse do lado do govêrno. De modo que a conclusão a que se chega, através de
um raciocínio correto, é a de que a mesma coisa, isto é, o interêsse do mais forte, é,
em tôda a parte, justa".
Sempre que esta opinião é geralmente aceita, os governantes deixam de estar
sujeitos a restrições morais, já que o que fazem a fim de conservar o poder não é
considerado chocante, exceto por aqueles que sofrem diretamente as conseqüências
de seus atos. Os rebeldes, igualmente, só se contêm por temor do fracasso; se podem
ter êxito através de meios implacáveis, não precisam temer que a sua implacabilidade
os torne impopulares.
A doutrina e Trasímaco, nos lugares em que é geralmente aceita, torna a
existência d euma comunidade organizada inteiramente dependente da fôrça física
indireta que se acha à disposição do govêrno. Torna, assim, inevitável a tirania
militar. Outras formas de govêrno podem ser estáveis onde haja alguma crença
comum que inspire respeito pela distribuição existente do poder. As crenças que, a
êste respeito, foram bem sucedidas, são, em geral, de tal ordem que não podem
permanecer de pé ante a crítica intelectual. O poder, em várias épocas, limitou-se,
com assentimento geral, às famílias reais, aos aristocratas, aos homens ricos, aos
homens em oposição às mulheres, e aos brancos em oposição aos homens de
qualquer outra côr. Mas a difusão da inteligência entre os súditos fêz com que êstes
rejeitassem tais limitações, e os detentores do poder viram-se obrigados a ceder ou a
confiar na fôrça nua. Para que um govêrno ordenado possa contar com o
consentimento geral, deve ser encontrado algum meio de persuadir a maioria da
humanidade a que -aceite uma doutrina diferente da de Trasímaco.
Deixo para um capítulo posterior as considerações sôbre os métodos de se
conquistar o consentimento geral, quanto a uma forma de govêrno, por outra maneira
que não a superstição, mas, a esta altura, são oportunas algumas observações
preliminares. Em primeiro lugar, o problema não é essencialmente insolúvel, pois
que já foi solucionado nos Estados Unidos. (Dificilmente poderia dizer-se que foi
resolvido na Grã-Bretanha, já que o respeito pela Coroa tem sido um elemento
essencial da estabilidade britânica.) Em segundo lugar, as vantagens de um govêrno
ordenado devem ser compreendidas por todos; isso implica, habitualmente, a
existência de oportunidades para que os homens enérgicos se tornem ricos ou
poderosos por meios constitucionais. Nos lugares em que alguma classe, que
contenha indivíduos dotados de energia e capacidade, é excluida de carreiras
desejáveis, há um elemento de instabilidade que tem probabilidade de conduzir, mais
cedo ou mais tarde, à rebelião. Em terceiro lugar, haverá necessidade de alguma
convenção social deliberadamente adotada no interêsse da ordem, e que não seja tão
flagrantemente injusta a ponto de despertar uma oposição generalizada. Uma tal
convenção, se fôr bem sucedida durante algum tempo, logo se tornará tradicional e
,terá todo o poder inerente ao poder tradicional.
O "Contrato Social" de Rousseau, para um leitor moderno, não parece muito
revolucionário, e é difícil de ver-se por que razão chocou tanto os governos. A razão
principal disso, creio eu, é ter procurado basear o poder governamental numa
convenção adotada por motivos racionais, e não uma reverência supersticiosa pelos
monarcas. O efeito das doutrinas de Rousseau sôbre o mundo mostra a dificuldade de
fazer-se com que os homens concordem com uma base não supersticiosa quanto ao
govêrno. Talvez isto não seja possível quando a superstição é afastada de maneira
demasiado súbita: alguma prática quanto à cooperação voluntária é necessária como
adestramento preliminar. A grande dificuldade é que o respeito pela lei é essencial à
ordem social, mas é impossível sob um regime tradicional que já não conta com o
assentimento dos governados, sendo necessàriamente menosprezado numa
revolução. Mas, embora o problema seja difícil, tem de ser resolvido, para que a
existência das comunidades ordenadas seja compatível com o livre exercício da
inteligência.
A natureza dêste problema não é, às vêzes, compreendida. Não basta
encontrar-se, em pensamento, uma forma de govêrno que, para os teóricos, não
pareça proporcionar nenhum motivo adequado para revolta; é necessário encontrar
uma forma de govêrno que possa ser realmente posta em prática e, ainda, que, se
existir, mereça suficiente lealdade para que possa suprimir ou impedir a revolução.
Ëste é um problema prático da ciência de governar, no qual devem levarse em conta
tôdas as crenças e preconceitos da população em apreço. Há os que acreditam que um
grupo qualquer de homens, uma vez que se haja apoderado da maquinaria do Estado,
possa, por meio da propaganda, assegurar o assentimento geral. Há, todavia,
limitações óbvias quanto a esta doutrina. A propaganda do Estado tem-se mostrado,
nos últimos tempos, impotente, ao opor-se ao sentimento nacional, como, por
exemplo, na Índia ( antes de 1921) e na Irlanda. Tem tido dificuldade em predominar
sôbre fortes sentimentos religiosos. Até que ponto e até quando poderá prevalecer
contra os interesses da maioria é ainda uma questão duvidosa. Deve-se admitir, no
entanto, que a propaganda do Estado se torna cada vez mais eficiente; o problema de
assegurar a aquiescência dos governados está-se tornando, por conseguinte, mais
fácil para os governos. As questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo
mais amplo, em capítulos ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.Estado
se torna cada vez mais eficiente; o problema de assegurar a aquiescência dos
governados está-se tornando, por conseguinte, mais fácil para os governos. As
questões que vimos suscitando serão analisadas, de modo mais amplo, em capítulos
ulteriores; por ora, basta que as tenhamos em mente.
Falei, até aqui, do poder político, mas, na esfera econômica, o poder nu é, pelo
menos, de igual importância. Marx considerava tôdas as relações econômicas, exceto
na comunidade socialista do futuro, como sendo governadas inteiramente pelo poder
nu. Por outro lado, o extinto Élie Halévy,historiador do benthumismo, afirmou que,
de um modo geral, aquilo que um homem recebe pelo seu trabalho é o que êle
considera que o seu trabalho vale. Estou certo de que isto não é verdade com respeito
aos autores: verifiquei sempre, em meu próprio caso, que quanto mais eu achava que
um livro valia, tanto menos me pagavam por êle. E se os homens de negócios que
tiveram êxito acreditam, realmente, que o seu trabalho vale aquilo que lhes
proporciona em dinheiro, devem ser ainda mais estúpidos do que parecem. Não
obstante, há um elemento de verdade na teoria de Halévy. Numa comunidade estável,
não deve haver nenhuma classe considerável que sinta um vivo sentimento de
injustiça; é de supor-se, pois, que, onde não há grande descontenta mento econômico,
a maioria dos homens não se sinta grande mente mal remunerada. Nas comunidades
pouco desenvolvidas, em que a subsistência do homem depende antes de um status
que de um contrato, êle, regra geral, achará justo tudo o que seja habitual. Mas,
mesmo neste caso, a fórmula de Halévy inverte causa e efeito: o costume é a causa
do sentimento do homem quanto ao que é justo, e não vice-versa. Neste caso, o poder
econômico é tradicional; só se torna nu quando os costumes antigos são perturbados
ou, por alguma -razão, se tornam objeto de crítica.
Na infância do industrialismo não havia costume album que regulamentasse os
salários que deviam ser pagos e os em, pregados não se achavam ainda organizados.
Por conseguinte, as relações existentes entre empregador e empregado se baseavam
no poder nu, dentro dos limites permitidos pelo Estado e, a princípio, esses limites
eram muito amplos. Os economistas ortodoxos haviam ensinado que os salários dos
trabalhadores não especializados deviam sempre tender a cair até o nível da
subsistência individual , mas não perceberam que isso dependia da exclusão dos
assalariados quanto ao poder político e os benefícios da união entre os mesmos.
Marx viu que a questão era uma questão de poder, mas penso que ele subestimou o
poder político, em comparação com o econômico. Os sindicatos, que aumentaram
incomensuravelmente o poder de negociação dos assalariados, podem ser
suprimidos, se os assalariados não participarem do poder político; numa série de
decisões legais os teria paralisado na Inglaterra, não fosse o fato de que , de 1868 em
diante, os trabalhadores urbanos passaram a ter direito ao voto. Dada a organização
dos sindicatos, os salários não são mais determinados pelo poder nu, mas por
negociação, como na compra e venda de utilidades.
O papel desempenhado pelo poder nu na economia é muito maior do que se
julgava antes de a influência de Marx ter-se tornado operante. Em certos casos, isto é
óbvio. Os haveres subtraídos de sua vítima por um salteador de estrada, ou os
despojos capturados de uma nação vencida por um conquistador, são, evidentemente,
uma questão de poder nu. O mesmo ocorre com a escravidão, quando o escravo não
aquiesce devido a um longo hábito. Um pagamento é extorquido pelo poder nu, se
tiver de ser feito apesar da indignação da pessoa que o faz. Tal indignação existe em
dois casos: quando o pagamento não é habitual, e nos lugares em que, devido a uma
mudança de ponto de vista, o que é costumeiro passou a ser considerado injusto.
Antigamente, o homem tinha domínio completo sôbre os bens da espôsa, mas o
movimento feminista produziu revolta contra êsse costume, o que levou a uma
modificação da lei. Antigamente, os patrões não eram responsáveis pelos acidentes
ocorridos com os seus empregados. Aqui, também, o sentimento mudou, produzindo
modificação na lei. Exemplos como êstes são inumeráveis.
Um operário que seja socialista poderá achar injusto o fato de ganhar menos do
que o seu patrão; neste caso, é o poder nu que o obriga à aquiescência. O antigo
sistema de desigualdade econômica é tradicional e não desperta, por si só,
indignação, salvo naqueles que se sentem revoltados contra a tradição. Assim, à
medida que se difunde o ponto de vista socialista, ó poder do capitalista se torna mais
nu., Um caso análogo é o da heresia e o do poder da Igreja Católica. Há, como
vimos, certos males que são inerentes ao poder nu, em oposição ao poder que
conquista a aquiescência. Por conseguinte, o aumento da opinião socialista tende a
tornar o poder capitalista mais prejudicial, exceto na medida em que a sua
implacabilidade possa ser mitigada pelo mêdo. Dada uma comunidade organizada
inteiramente de acôrdo com o modelo marxista, em que todos os assalariados fossem
socialistas convictos e todos os outros fôssem, igualmente, defensores convictos do
sistema capitalista, o partido vitorioso, qualquer que pudesse ser, não teria outra
saída senão o exercício do poder nu com relação aos seus oponentes. Esta situação,
profetizada por Marx, seria muito grave. A propaganda de seus discípulos, na medida
em que é bem sucedida, tende a produzi-la.
A maioria das grandes abominações, na história da humanidade, está
relacionada com o poder nu – não apenas as que estão associadas com a guerra, mas
outras igualmente terríveis, embora menos espetaculares. A escravidão e o comércio
de escravos, a exploração do Congo, os horrores do primitivo industrialismo, as
crueldades contra crianças, as torturas judiciais, as leis criminais, prisões, hospícios,
perseguições religiosas, o tratamento atroz dos judeus, as frivolidades impiedosas dos
déspotas, a iniqüidade incrível no tratamento dos adversários políticos na Alemanha
e na Rússia de nossos dias – todos êsses são exemplos do emprêgo do poder nu contra
vítimas indefesas.
Muitas formas de poder injusto, profundamente enraizadas na tradição, devem
ter sido, em alguma época, formas do poder nu. As esposas cristãs, durante muitos
séculos, obedeceram os maridos porque São Paulo disse que deviam fazê-lo; mas a
história de Jason e Medéia nos dá um exemplo das dificuldades que os homens
devem ter tido antes de que a doutrina de São Paulo fôsse aceita geralmente pelas
mulheres.
Tem de existir tanto o poder dos governos como o dos aventureiros anárquicos.
Tem de haver mesmo o poder nu, enquanto houver rebeldes que ajam contra o
govêrno, ou mesmo criminosos comuns. Mas, para que a vida humana possa ser, para
a massa da humanidade, algo melhor que uma triste miséria pontilhada de momentos
de vivo terror, deve haver n menor poder nu possível. O exercício do poder, para que
possa ser algo melhor que a imposição de caprichosas torturas, deve ser limitado
pelas salvaguardas da lei e do costume, e só deve ser permitido depois de uma
deliberação devida, sendo confiado a homens que sejam estreitamente fiscalizados,
no interêsse dos que estão a êles sujeitos.
Não pretendo dizer que isto seja fácil. Implica, entre outras coisas, a
eliminação da guerra, pois tôda guerra é um exercício do poder nu. Implica um
mundo livre das opressoes intoleráveis que provocam as rebeliões. Implica a
elevação do padrão de vida em todo o mundo – particularmente na Índia, China e
Japão – pelo menos até o nível que foi atingido nos Estados Unidos antes da
depressão. Implica instituições análogas às dos tribunos romanos, não para o povo
como um todo, mas para cada parte da população que esteja sujeita á opressão, como
as minorias e os criminosos. Implica, sobretudo, uma opinião pública vigilante, que
tenha oportunidade de verificar os fatos.
É inútil confiar-se na virtude de alguns indivíduos ou de grupos de indivíduos.
O rei filósofo foi há muito posto de lado como um sonho ocioso, mas o partido dos
filósofos, embora igualmente falaz, é saudado como sendo uma grande descoberta.
Nenhuma solução real do problema do poder pode ser encontrada no govêrno
irresponsável de uma minoria, nem mediante qualquer outro atalho. Mas a discussão
mais ampla desta matéria deve ser deixada para um capítulo posterior.

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Celebridades filosofais como: Marilena Chaui e Franklin Leopoldo e Silva

Oquê? Jornada “Merleau-Ponty e o Grande Racionalismo”
Quando? 17 e 18 de novembro de 2008

Onde?  Conjunto Didático de Filosofia e Ciências Sociais – Sala 08. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cidade Universitária

Mais informações e a programação completa aqui

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Bertrand Russel – A filosofia entre a religião e a ciência

Os conceitos da vida e do mundo que chamamos "filosóficos" são
produto de dois fatores: um, constituído de fatores religiosos e éticos
herdados; o outro, pela espécie de investigação que podemos denominar
"científica", empregando a palavra em seu sentido mais amplo. Os filósofos,
individualmente, têm diferido amplamente quanto às proporções em que esses
dois fatores entraram em seu sistema, mas é a presença de ambos que, em
certo grau, caracteriza a filosofia.
"Filosofia" é uma palavra que tem sido empregada de várias maneiras,
umas mais amplas, outras mais restritas. Pretendo empregá-la em seu sentido
mais amplo, como procurarei explicar adiante. A filosofia, conforme entendo
a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia,
consiste de especulações sobre assuntos a que o conhecimento exato não
conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela mais à razão humana do
que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento
definido – eu o afirmaria – pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que
ultrapassa o conhecimento definido, pertence à teologia. Mas entre a teologia
e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os
campos: essa Terra de Ninguém é a filosofia. Quase todas as questões do
máximo interesse para os espíritos especulativos são de tal índole que a
ciência não as pode responder, e as respostas confiantes dos teólogos já não
nos parecem tão convincentes como o eram nos séculos passados. Acha-se o
mundo dividido em espírito e matéria? E, supondo-se que assim seja, que é
espírito e que é matéria? Acha-se o espírito sujeito à matéria, ou é ele dotado
de forças independentes? Possui o universo alguma unidade ou propósito?
Está ele evoluindo rumo a alguma finalidade? Existem realmente leis da
natureza, ou acreditamos nelas devido unicamente ao nosso amor inato pela
ordem? é o homem o que ele parece ser ao astrônomo, isto é, um minúsculo
conjunto de carbono e água a rastejar, impotentemente, sobre um pequeno
planeta sem importância? Ou é ele o que parece ser a Hamlet? Acaso é ele, ao
mesmo tempo, ambas as coisas? Existe uma maneira de viver que seja nobre e
uma outra que seja baixa, ou todas as maneiras de viver são simplesmente
inúteis? Se há um modo de vida nobre, em que consiste ele, e de que maneira
realizá-lo? Deve o bem ser eterno, para merecer o valor que lhe atribuímos, ou
vale a pena procurá-lo, mesmo que o universo se mova, inexoravelmente, para
a morte? Existe a sabedoria, ou aquilo que nos parece tal não passa do último
refinamento da loucura Tais questões não encontram resposta no laboratório.
As teologias têm pretendido dar respostas, todas elas demasiado concludentes,
mas a sua própria segurança faz com que o espírito moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de tais questões, mesmo que não se resolva esses
problemas, constitui o empenho da filosofia.
Mas por que, então, – poderíeis perguntar – perder tempo com problemas
tão insolúveis? A isto, poder-se-ia responder como historiador ou como
indivíduo que enfrenta o terror da solidão cósmica. A resposta do historiador,
tanto quanto me é possível dá-la, aparecerá no decurso desta obra. Desde que
o homem se tornou capaz de livre especulação, suas ações, em muitos
aspectos importantes, têm dependido de teorias relativas ao mundo e á vi a
humana, relativas ao bem e ao mal. Isto é tão verdadeiro em nossos dias como
em qualquer época anterior. Para compreender uma época ou uma nação,
devemos compreender sua filosofia e, para que compreendamos sua filosofia,
temos de ser, até certo ponto, filósofos. Há uma relação causal recíproca. As
circunstâncias das vidas humanas contribuem muito para determinar a sua
filosofia, mas, inversamente, sua filosofia muito contribui para determinar tais
circunstâncias. Essa ação mútua, através dos séculos, será o tema das páginas
seguintes.
Há, todavia, uma resposta mais pessoal. A ciência diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos saber é muito pouco e, se esquecemos quanto nos é
impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz â crença dogmática de que
temos conhecimento de coisas que, na realidade, ignoramos e, por isso, gera
uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza,
na presença de grandes esperanças e receios, é dolorosa, mas temos de
suportá-la, se quisermos viver sem o apoio de confortadores contos de fadas,
Não devemos também esquecer as questões suscitadas pela filosofia, ou
persuadir-nos de que encontramos, para as mesmas, respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa segurança e sem que se fique, não obstante,
paralisado pela hesitação, é talvez a coisa principal que a filosofia, em nossa
época, pode proporcionar àqueles que a estudam.
A filosofia, ao contrário do que ocorreu com a teologia , surgiu, na
Grécia, no século VI antes de Cristo. Depois de seguir o seu curso na
antigüidade, foi de novo submersa pela teologia quando surgiu o Cristianismo
e Roma se desmoronou. Seu segundo período importante, do século YI ao
século XIV, foi dominado pela Igreja Católica, com exceção de alguns poucos
e grandes rebeldes, como, por exemplo, o imperador Frederico II (1195-1250).
Este período terminou com as perturbações que culminaram na Reforma. O
terceiro período, desde o século XVII até hoje, é dominado, mais do que os
períodos que o precederam, pela ciência. As crenças religiosas tradicionais
mantêm sua importância, mas se sente a necessidade de que sejam
justificadas, sendo modificadas sempre que a ciência torna imperativo tal
passo. Poucos filósofos deste período são ortodoxos do ponto de vista
católico, e o Estado secular adquire mais importância em suas especulações do
que a Igreja.
A coesão social e a liberdade individual, como a religião e a ciência,
acham-se num estado de conflito ou difícil compromisso durante todo este
período. Na Grécia, a coesão social era assegurada pela lealdade ao Estado-
Cidade; o próprio Aristóteles, embora, em sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade, não conseguia ver mérito algum em
qualquer outro tipo de comunidade. Variava grandemente o grau em que a
liberdade individual cedia ante seus deveres para com a Cidade. Em Esparta, o
indivíduo tinha tão pouca liberdade como na Alemanha ou na Rússia
modernas; em Atenas, apesar de perseguições ocasionais, os cidadãos
desfrutaram, em seu melhor período, de extraordinária liberdade quanto a
restrições impostas pelo Estado. 0 pensamento grego, até Aristóteles, é
dominado por uma devoção religiosa e patriótica á Cidade; seus sistemas
éticos são adaptados às vidas dos cidadãos e contêm grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram, primeiro aos macedônios e, depois, aos
romanos, as concepções válidas em seus dias de independência não eram mais
aplicáveis. Isto produziu, por um lado, uma perda de vigor, devido ao
rompimento com as tradições e, por outro lado, uma ética mais individual e
menos social. Os estóicos consideravam a vida virtuosa mais como uma
relação da alma com Deus do que como uma relação do cidadão com o
Estado. Prepararam, dessa forma, o caminho para o Cristianismo, que, como o
estoicismo, era, originalmente, apolítico, já que, durante os seus três primeiros
séculos, seus adeptos não tinham influência no governo. A coesão social,
durante os seis séculos e meio que vão de Alexandre a Constantino, f oi
assegurada, não pela filosofia nem pelas antigas fidelidades, mas pela força –
primeiro a força dos exércitos e, depois, a da administração civil. Os exércitos
romanos, as estradas romanas, a lei romana e os funcionários romanos,
primeiro criaram e depois preservaram um poderoso Estado centralizado.
Nada se pode atribuir à filosofia romana, já que esta não existia.
Durante esse longo período, as idéias gregas herdadas da época da
liberdade sofreram um processo gradual de transformação. Algumas das
velhas idéias, principalmente aquelas que deveríamos encarar como
especificamente religiosas, adquiriram uma importância relativa; outras, mais
racionalistas, foram abandonadas, pois não mais se ajustavam ao espírito da
época. Desse modo, os pagãos posteriores foram se adaptando á tradição
grega, até esta poder incorporar-se na doutrina cristã.
O Cristianismo popularizou uma idéia importante, já implícita nos
ensinamentos dos estóicos, mas estranha ao espírito geral da antigüidade, isto
é, a idéia de que o dever do homem para com Deus é mais imperativo do que o
seu dever para com o Estado.l A opinião de que "devemos obedecer mais a
Deus que ao homem", como Sócrates e os Apóstolos afirmavam, sobreviveu à
conversão de Constantino, porque os primeiros cristãos eram arianos ou se
sentiam inclinados para o arianismo. Quando os imperadores se tornaram
ortodoxos, foi ela suspensa temporariamente. Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem como no Império Russo subseqüente, o qual derivou
do Cristianismo de Constantinopla. Mas no Ocidente, onde os imperadores
católicos foram quase imediatamente substituídos ( exceto em certas partes da
Gália ) por conquistadores bárbaros heréticos, a superioridade da lealdade
religiosa sobre a lealdade política sobreviveu e, até certo ponto, persiste ainda
hoje.
A invasão dos bárbaros pôs fim, por espaço de seis séculos, à civilização
da Europa Ocidental. Subsistiu, na Irlanda, até que os dinamarqueses a
destruíram no século IX. Antes de sua extinção produziu, lá, uma figura
notável, Scotus Erigena. No Império Oriental, a civilização grega sobreviveu,
em forma dissecada, como num museu, até à queda de Constantinopla, em
1453, mas nada que fosse de importância para o mundo saiu de
Constantinopla, exceto uma tradição artística e os Códigos de Direito Romano
de Justiniano.
Durante o período de obscuridade, desde o fim do século V até a metade
do século XI, o mundo romano ocidental sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito entre o dever para com Deus e o dever para com o
Estado, introduzido pelo Cristianismo, adquiriu o caráter de um conflito entre
a Igreja e o rei. A jurisdição eclesiástica do Papa estendia-se sobre a Itália,
França, Espanha, Grã-Bretanha e Irlanda, Alemanha, Escandinávia e Polônia.
A princípio, fora da Itália e do sul da França foi muito leve o seu controle
sobre bispos e abades, mas, desde o tempo de Gregório VII ( fins do século XI
), tornou-se real e efetivo. Desde então o clero, em toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização, dirigida por Roma, que procurava o poder
inteligente e incansavelmente e, em geral, vitoriosamente, até depois do ano
1300, em seus conflitos com os governantes seculares. O conflito entre a
Igreja e o Estado não foi apenas um conflito entre o clero e os leigos; foi,
também, uma renovação da luta entre o mundo mediterrâneo e os bárbaros do
norte. A unidade da Igreja era um reflexo da unidade do Império Romano; sua
liturgia era latina, e os seus homens mais proeminentes eram, em sua maior
parte, italianos, espanhóis ou franceses do sul. Sua educação, quando esta
renasceu, foi clássica; suas concepções da lei e do governo teriam sido mais
compreensíveis para Marco Aurélio do que para os monarcas contemporâneos.
A Igreja representava, ao mesmo tempo, continuidade com o passado e com o
que havia de mais civilizado no presente.
O poder secular, ao contrário, estava nas mãos de reis e barões de origem
teutônica, os quais procuravam preservar, o máximo possível, as instituições
que haviam trazido as florestas da Alemanha. O poder absoluto era alheio a
essas instituições, como também era estranho, a esses vigorosos
conquistadores, tudo aquilo que tivesse aparência de uma legalidade monótona
e sem espírito. O rei tinha de compartilhar seu poder com a aristocracia feudal,
mas todos esperavam, do mesmo modo, que lhes fosse permitido, de vez em
quando, uma explosão ocasional de suas paixões em forma de guerra,
assassínio, pilhagem ou rapto. é possível que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente piedosos e, afinal de contas, o arrependimento era em
si mesmo uma forma de paixão. A Igreja, porém, jamais conseguiu produzir
neles a tranqüila regularidade de uma boa conduta, como a que o empregador
moderno exige e, às vezes, consegue obter de seus empregados. De que lhes
valia conquistar o mundo, se não podiam beber, assassinar e amar como o
espírito lhes exigia? E por que deveriam eles, com seus exércitos de altivos,
submeter-se ás ordens de homens letrados, dedicados ao celibato e destituídos
de forças armadas? Apesar da desaprovação eclesiástica, conservaram o duelo
e a decisão das disputas por meio das armas, e os torneios e o amor cortesão
floresceram. às vezes, num acesso de raiva, chegavam a matar mesmo
eclesiásticos eminentes.
Toda a força armada estava do lado dos reis, mas, não obstante, a Igreja
saiu vitoriosa. A Igreja ganhou a batalha, em parte, porque tinha quase todo o
monopólio do ensino e, em parte, porque os reis viviam constantemente em
guerra. uns com os outros; mas ganhou-a, principalmente, porque, com muito
poucas exceções, tanto os governantes como ó povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as chaves do céu. A Igreja podia decidir se um rei devia
passar a eternidade no céu ou no inferno; a Igreja podia absolver os súditos do
dever de fidelidade e, assim, estimular a rebelião. Além disso, a Igreja
representava a ordem em lugar da anarquia e, por conseguinte, conquistou o
apoio da classe mercantil que surgia. Na Itália, principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A tentativa teutônica .de preservar pelo menos uma independência. parcial
da Igreja manifestou-se não apenas na política, mas, também, na arte, no
romance, no cavalheirismo e na guerra. Manifestou-se muito pouco no mundo
intelectual, pois o ensino se achava quase inteiramente nas mãos do clero. A
filosofia explícita da Idade Média não é um espelho exato da época, mas
apenas do pensamento de um grupo. Entre os eclesiásticos, porém –
principalmente entre os frades franciscanos – havia alguns que, por várias
razões, estavam em desacordo com o Papa. Na Itália, ademais, a cultura
estendeu-se aos leigos alguns séculos antes de se estender até ao norte dos
Alpes. Frederico II, que procurou fundar uma nova religião, representa o
extremo da cultura antipapista; Tomás de Aquino, que nasceu no reino de
Nápoles, onde o poder de Frederico era supremo, continua sendo até hoje o
expoente clássico da filosofia papal. Dante, cerca de cinqüenta anos mais
tarde, conseguiu chegar a uma síntese, oferecendo a única exposição
equilibrada de todo o mundo ideológico medieval
Depois de Dante, tanto por motivos políticos como intelectuais, a síntese
filosófica medieval se desmoronou. Teve ela, enquanto durou, uma qualidade
de ordem e perfeição de miniatura: qualquer coisa de que esse sistema se
ocupasse, era colocada com precisão em relação com o que constituía o seu
cosmo bastante limitado. Mas o Grande Cisma, o movimento dos Concílios e
o papado da renascença produziram a Reforma, que destruiu a unidade do
Cristianismo e a teoria escolástica de governo que girava em torno do Papa. N
o período da Renascença, o novo conhecimento, tanto da antigüidade como da
superfície da terra, fez com que os homens se cansassem de sistemas, que
passaram a ser considerados como prisões mentais. A astronomia de
Copérnico atribuiu á terra e ao homem uma posição mais humilde do que
aquela que haviam desfrutado na teoria de Ptolomeu. O prazer pelos f atos
recentes tomou o lugar, entre os homens inteligentes, do prazer de raciocinar,
analisar e construir sistemas. Embora a Renascença, na arte, conserve ainda
uma determinada ordem, prefere, quanto ao que diz respeito ao pensamento,
uma ampla e fecunda desordem. Neste sentido, Montaigne é o mais típico
expoente da época.
Tanto na teoria política como em tudo o mais, exceto a arte, a ordem sofre
um colapso. A Idade Média, embora praticamente turbulenta, era dominada,
em sua ideologia, pelo amor da legalidade e por uma teoria muito precisa do
poder político. Todo poder procede, em última análise, de Deus; Ele delegou
poder ao Papa nos assuntos sagrados, e ao Imperador nos assuntos seculares.
Mas tanto o Papa como o Imperador perderam sua importância durante o
século XV. O Papa tornou-se simplesmente um dos príncipes italianos,
empenhado no jogo incrivelmente complicado e inescrupuloso do poder
político italiano. As novas monarquias nacionais na França, Espanha e
Inglaterra tinham, em seus próprios territórios, um poder no qual nem o Papa
nem o Imperador podiam interferir. O Estado nacional, devido, em grande
parte, à pólvora, adquiriu uma influência sobre o pensamento e o modo de
sentir dos homens, como jamais exercera antes – influência essa que,
progressivamente, destruiu o que restava da crença romana quanto à unidade
da civilização.
Essa desordem política encontrou sua expressão no Príncipe, de
Maquiavel. Na ausência de qualquer princípio diretivo, a política se
transformou em áspera luta pelo poder. O Príncipe dá conselhos astutos
quanto à maneira de se participar com êxito desse jogo. O que já havia
acontecido na idade de ouro da Grécia, ocorreu de novo na Itália renascentista:
os freios morais tradicionais desapareceram, pois eram considerados como
coisa ligada à superstição; a libertação dos grilhões tornou os indivíduos
enérgicos e criadores, produzindo um raro florescimento do gênio mas a
anarquia e a traição resultantes, inevitavelmente, da decadência da moral,
tornou os italianos coletivamente impotentes, e caíram, como os gregos, sob o
domínio de nações menos civilizadas do que eles, mas não tão destituídas – de
coesão social.
Todavia, o resultado foi menos desastroso do que no caso da Grécia, pois
as nações que tinham acabado de chegar ao poder, com exceção da Espanha,
se mostravam capazes de tão grandes realizações como o havia sido a Itália.
Do século XVI em diante, a história do pensamento europeu é dominada pela
Reforma. Reforma foi um movimento complexo, multiforme, e seu êxito se
deve a numerosas causas. De um modo geral, foi uma revolta das nações do
norte contra o renovado domínio de Roma. A religião fora a força que
subjugara o Norte, mas a religião, na Itália, decaíra: o papado permanecia
como uma instituição, extraindo grandes tributos da Alemanha e da Inglaterra,
mas estas nações, que eram ainda piedosas, não podiam sentir reverência
alguma para com os Bórgias e os Médicis, que pretendiam salvar as almas do
purgatório em troca de dinheiro, que esbanjavam no luxo e na imoralidade.
Motivos nacionais motivos econômicos e motivos, religiosos conjugaram-se
para fortalecer a revolta contra Roma. Além disso, os príncipes logo
perceberam que, se a Igreja se tornasse, em seus territórios, simplesmente
nacional, eles seriam capazes de dominá-la, tornando-se, assim, muito mais
poderosos, em seus países, do que jamais o haviam sido compartilhando o seu
domínio com o Papa. Por todas essas razões, as inovações teológicas de
Lutero foram bem recebidas, tanto pelos governantes como pelo povo, na
maior parte da Europa Setentrional.
A Igreja Católica procedia de três fontes. Sua história sagrada era judaica;
sua teologia, grega, e seu governo e leis canônicas, ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou os elementos romanos, atenuou os elementos
gregos e fortaleceu grandemente os elementos judaicos. Cooperou, assim, com
as forças nacionalistas que estavam desfazendo a obra de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo primeiro pelo Império Romano e, depois, pela Igreja
Romana. Na doutrina católica, a revelação divina não terminava na sagrada
escritura, mas continuava, de era em era, através da Igreja, à qual, pois, era
dever do indivíduo submeter suas opiniões pessoais. Os protestantes, ao
contrário, rejeitaram a Igreja como veículo da revelação divina; a verdade
devia ser procurada unicamente na Bíblia, que cada qual podia interpretar à
sua maneira. Se os homens diferissem em sua interpretação, não havia
nenhuma autoridade designada pela divindade que resolvesse tais
divergências. Na prática, o Estado reivindicava o direito que pertencera antes
à Igreja – mas isso era uma usurpação. Na teoria protestante, não devia haver
nenhum intermediário terreno entre a alma e Deus.
Os efeitos dessa mudança foram importantes. A verdade não mais era
estabelecida mediante consulta à autoridade, mas por meio da meditação
íntima. Desenvolveu-se, rapidamente, uma tendência para o anarquismo na
política e misticismo na religião, o que sempre fora difícil de se ajustar à
estrutura da ortodoxia católica. Aconteceu que, em lugar de um único
Protestantismo, surgiram numerosas seitas; nenhuma filosofia se opunha à
escolástica, mas havia tantas filosofias quantos eram os filósofos. Não havia,
no século XIII, nenhum Imperador que se opusesse ao Papa, mas sim um
grande número de reis heréticos. O resultado disso, tanto no pensamento como
na literatura, foi um subjetivismo cada vez mais profundo, agindo primeiro
como uma libertação saudável da escravidão espiritual mas caminhando,
depois, constantemente, para um isolamento pessoal, contrário à solidez
social.
A filosofia moderna começa com Descartes, cuja certeza fundamental é a
existência de si mesmo e de seus pensamentos, dos quais o mundo exterior
deve ser inferido. Isso constitui apenas a primeira fase de um desenvolvimento
que, passando por Berkeley e Kant, chega a Fichte, para quem tudo era apenas
uma emanação do eu. Isso era uma loucura, e, partindo desse extremo, a
filosofia tem procurado, desde então, evadir-se para o mundo do senso comum
cotidiano.
Com o subjetivismo na filosofia, o anarquismo anda de mãos dadas com a
política. Já no tempo de Lutero, discípulos inoportunos e não reconhecidos
haviam desenvolvido a doutrina do anabatismo, a qual, durante algum tempo,
dominou a cidade de Wünster. Os anabatistas repudiavam toda lei, pois
afirmavam que o homem bom seria guiado, em todos os momentos, pelo
Espírito Santo, que não pode ser preso a fórmulas. Partindo dessas premissas,
chegam ao comunismo e à promiscuidade sexual. Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica. Mas sua doutrina, em formas mais atenuadas, se
estendem pela Holanda, Inglaterra e Estados Unidos; historicamente, é a
origem do "quakerismo". Uma forma mais feroz de anarquismo, não mais
relacionada Com a religião, surgiu no século XIX. Na Rússia, Espanha e, em
menor grau, na Itália, obteve considerável êxito, constituindo, até hoje, um
pesadelo para as autoridades americanas de imigração. Esta versão moderna,
embora anti-religiosa, encerra ainda muito do espírito do protestantismo
primitivo; difere principalmente dele devido ao fato de dirigir contra os
governos seculares a hostilidade que Lutero dirigia contra os Papas.
A subjetividade, uma vez desencadeada, já não podia circunscrevem-se
aos seus limites, até que tivesse seguido seu curso. Na moral, a atitude enfática
dos protestantes, quanto à consciência individual, era essencialmente
anárquica. O hábito e o costume eram tão fortes que, exceto em algumas
manifestações ocasionais, como, por exemplo, a de Münster, os discípulos do
individualismo na ética continuaram a agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio precário. O culto do século XVIII à
"sensibilidade" começou a romper esse equilíbrio: um ato era admirado não
pelas suas boas conseqüências, ou porque estivesse de acordo com um código
moral, mas devido à emoção que o inspirava. Dessa atitude nasceu o culto do
herói, tal como foi manifestado por Carlyle e Nietzsche, bem como o culto
byroniano da paixão violenta, qualquer que esta seja.
O movimento romântico, na arte, na literatura e na política, está ligado a essa
maneira subjetiva de julgar-se os homens, não como membros de uma
comunidade, mas como objetos de contemplação esteticamente encantadores.
Os tigres são mais belos do que as ovelhas, mas preferimos que estejam atrás
de grades. O romântico típico remove as grades e delicia-se com os saltos
magníficos com que o tigre aniquila as ovelhas. Incita os homens a imaginar
que são tigres e, quando o consegue, os resultados não são inteiramente
agradáveis.
Contra as formas mais loucas do subjetivismo nos tempos modernos tem
havido várias reações. Primeiro, uma filosofia de semicompromisso, a
doutrina do liberalismo, que procurou delimitar as esferas relativas ao governo
e ao indivíduo. Isso começa, em sua forma moderna, com Locke, que é tão
contrário ao "entusiasmo" – o individualismo dos anabatistas como à
autoridade absoluta e à cega subserviência à tradição. Uma rebelião mais
extensa conduz à doutrina do culto do Estado, que atribui ao Estado a posição
que o Catolicismo atribuía à Igreja, ou mesmo, às vezes, a Deus. Hobbes,
Rousseau e Hegel representam fases distintas desta teoria, e suas doutrinas se
acham encarnadas, praticamente, em Cromwell, Napoleão e na Alemanha
moderna. O comunismo, na teoria, está muito longe dessas filosofias, mas é
conduzido, na prática, a um tipo de comunidade bastante semelhante àquela e
que resulta a adoração do Estado.
Durante todo o transcurso deste longo desenvolvimento, desde 600 anos
antes de Cristo até aos nossos dias, os filósofos têm-se dividido entre aqueles
que querem estreitar os laços sociais e aqueles que desejam afrouxá-los. A
esta diferença, acham-se associadas outras. Os partidários da disciplina
advogaram este ou aquele sistema dogmático, velho ou novo, chegando,
portanto a ser, em menor ou maior grau, hostis à ciência, já que seus dogmas
não podiam ser provados empiricamente. Ensinavam, quase invariavelmente,
que a felicidade não constitui o bem, mas que a "nobreza" ou o "heroísmo"
devem ser a ela preferidos. Demonstravam simpatia pelo que havia de
irracional na natureza humana, pois acreditavam que a razão é inimiga da
coesão social. Os partidários da liberdade, por outro lado, com exceção dos
anarquistas extremados, procuravam ser científicos, utilitaristas, racionalistas,
contrários à paixão violenta, e inimigos de todas as formas mais profundas de
religião. este conflito existiu, na Grécia, antes do aparecimento do que
chamamos filosofia, revelando-se já, bastante claramente, no mais antigo
pensamento grego. Sob formas diversas, persistiu até aos nossos dias, e
continuará, sem dúvida, a existir durante muitas das eras vindouras.
É claro que cada um dos participantes desta disputa como em tudo que
persiste durante longo tempo – tem a sua parte de razão e a sua parte de
equívoco. A coesão social é uma necessidade, e a humanidade jamais
conseguiu, até agora, impor a coesão mediante argumentos meramente
racionais. Toda comunidade está exposta a dois perigos opostos: por um lado,
a fossilização, devido a uma disciplina exagerada e um respeito excessivo pela
tradição; por outro lado, a dissolução, a submissão ante a conquista
estrangeira, devido ao desenvolvimento da independência pessoal e do
individualismo, que tornam impossível a cooperação. Em geral, as civilizações
importantes começam por um sistema rígido e supersticioso que, aos poucos,
vai sendo afrouxado, e que conduz, em determinada fase, a um período de
gênio brilhante, enquanto perdura o que há de bom na tradição antiga, e não se
desenvolveu ainda o mal inerente à sua dissolução. Mas, quando o mal
começa a manifestar-se, conduz à anarquia e, daí, inevitavelmente, a uma
nova tirania, produzindo uma nova síntese, baseada num novo sistema
dogmático. A doutrina do liberalismo é uma tentativa para evitar essa
interminável oscilação. A essência do liberalismo é uma tentativa no sentido
de assegurar uma ordem social que não se baseie no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade sem acarretar mais restrições do que as necessárias
à preservação da comunidade. Se esta tentativa pode ser bem sucedida,
somente o futuro poderá demonstrá-lo.

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Edição das obras completas no Brasil evidencia atualidade do filósofo alemão .

por Francisco Quinteiro Pires

Se houvesse os 10 mandamentos do capitalismo, o primeiro seria – “Não criticarás o capitalismo em vão.” O risco é padecer no inferno. O filósofo Theodor W. Adorno (1903-1969) foi acusado de negativista e niilista por ter apontado a perversão do iluminismo e as semelhanças entre capitalismo e totalitarismo. Ele mostrou que existe por aí muita irracionalidade camuflada de boa moça da razão. Para tirar o pensador alemão do limbo, a que foi jogado nos anos 1970, porque suas críticas teriam envelhecido, é necessário reler suas obras à luz dos dilemas atuais. A oportunidade chegou.

A Editora Unesp tem previsão de lançar 21 volumes, incluindo traduções inéditas. A Coleção Adorno se divide em quatro coletâneas: Escritos Sobre Música; Escritos sobre Sociologia; Indústria Cultural e Escritos de Psicologia Social e Psicanálise. A coordenação do projeto está a cargo de quatro especialistas: Jorge de Almeida, Ricardo Barbosa, Rodrigo Duarte e Vladimir Safatle.

Os primeiros lançamentos são As Estrelas Descem à Terra (tradução de Pedro R. de Oliveira) e Introdução à Sociologia (tradução de Wolfgang L. Maar). No primeiro, Adorno estuda, nos anos 1950, a coluna astrológica do jornal Los Angeles Times, editada por Carroll Righter, consultor de atores de Hollywood. O segundo contém o último curso do filósofo na Universidade de Frankfurt – é uma apresentação das categorias fundamentais da teoria social de Adorno. Ambos mostram como a crítica adorniana ao capitalismo não se desqualificou. Para Vladimir Safatle, professor de filosofia na USP, a iniciativa editorial evidencia que Adorno está cheio de novidades e à espera de leitores. Leia a seguir trechos da entrevista com Safatle.

Adorno andou fora de moda, não?

Adorno foi considerado obsoleto a partir dos anos 1970. Sua teoria social estaria ultrapassada diante das novas configurações do capitalismo. Sua teoria estética estaria ultrapassada com o envelhecimento das vanguardas. Sua filosofia seria um beco sem saída, que operava sem síntese. Adorno seria incapaz de indicar um critério renovado de racionalidade. Hoje temos condição de ver como a avaliação era equivocada. Sua teoria social vai ficar cada vez mais atual, mas para isso é necessário reler seus textos. Somos o futuro pensado pela experiência intelectual adorniana.

Por que Adorno é um dos filósofos incontornáveis do século passado?

Ele é um filósofo fundamental na constituição do campo da sociologia, da estética, em especial a musical, e mesmo da psicologia social do século 20. Do ponto de vista filosófico, sua obra foi capaz de desenvolver série de respostas a questões maiores do pensamento contemporâneo que não foram completamente elaboradas, como o seu conceito de sujeito e a sua concepção de linguagem. A obra de Adorno precisa ser descoberta.

Adorno foi um crítico do iluminismo.

Sua relação com a tradição da racionalidade moderna é ainda hoje proveitosa. Ele tratou de mostrar como valores, princípios e processos fundamentais para a constituição da razão moderna inverteram as suas expectativas. Enquanto se esperava realizar a emancipação, apareceu um processo de dominação instrumental tanto da natureza quanto do indivíduo. Se pensamos em constituir um critério seguro de moralidade, ele se inverteu em perversão. Adorno teve sensibilidade para notar a inversão do projeto iluminista.

Um dos elementos que mais chamaram a atenção de Adorno na análise da coluna astrológica, que resultou em As Estrelas Descem à Terra, é a intencional exploração da fraqueza do ego dos leitores. Mais de 50 anos depois, como está essa exploração?

A leitura desse texto é impressionante pela sua atualidade. Um leitor de 2008 consegue entender claramente as questões de Adorno tendo em vista os jornais dos anos 50. O que ele procurava entender era por que os leitores, que não acreditavam totalmente nas colunas, deixavam pautar suas ações por algo fundamental dentro de uma visão de mundo. Uma visão de mundo que se faz dominante, entre outras coisas, por meio de uma coluna de astrologia. É impossível compreender os efeitos da indústria cultural sem ter uma teoria elaborada do sujeito, da subjetividade e da vida psíquica. A subjetividade com a qual Adorno se confrontou na aurora do século 20 encontrou seu amadurecimento na nossa época. Ele identificou o processo que vivemos hoje. Não podemos mais pensar o sujeito a partir de categorias psíquicas tradicionais, que o tratam como um ser autônomo, dono de uma expressão autêntica.

Na fase atual do capitalismo existe uma tendência fascista latente? Podemos falar que ela se acentuou?

A tendência fascista é uma questão presente nos textos do Adorno, mas antes é necessário compreender que ele não falou de capitalismo e totalitarismo como assuntos idênticos. Ele entendia ser necessária uma teoria sobre o fascismo para compreender no que as nossas sociedades são totalitárias. Num texto sobre a propaganda fascista, ele diz que ninguém acreditava na ideologia do fascismo. Sequer os seus próprios líderes. Todos faziam uma performance, representavam seu próprio entusiasmo. Essa idéia é fundamental. Totalitarismo é baseado no fato de que o poder não exige engajamento do sujeito ao discurso do poder. O poder pede que representemos nosso engajamento e permite que tenhamos distância do que fazemos. Eu posso agir sem acreditar. Ou, por não acreditar, eu posso continuar fazendo. Para crer no que faço deveria ter uma ética da convicção, impossível de ser exigida em crises de legitimidade como a nossa. Essa distância é fundamental no totalitarismo e no capitalismo. É elemento central, pois permite a perpetuação de estruturas de poder.

Isso soa bem familiar.

É só pegar alguém como Silvio Berlusconi (primeiro-ministro da Itália). Ninguém em última instância acredita numa figura como a dele, totalmente desqualificada. Mas por isso ele pode se perpetuar. Ele não exige nenhuma crença. Assim, o sujeito não só se torna incompatível com sua ação, como sua ação se torna suportável. Em Adorno, a análise da ideologia é sobre as disposições de conduta dos indivíduos. Cada vez mais hegemônicas, essas disposições são sintomas de uma consciência dividida entre aquilo que ela faz e aquilo em que acredita. Faz 20 anos um pensamento insiste na obsolescência da crítica da ideologia. Agora podemos com Adorno recuperar grandes categorias do pensamento sem adotar um viés tradicional.

Fonte

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Não existe continuidade da barbárie à civilização, mas há uma linha reta do estilingue à bomba de megatons; a Teoria crítica responsabiliza a razão pelos sofismas científicos do progresso

 

Domingo, 12 de Outubro de 2008

Sob as estrelas, o desconhecido

Pensador mostrou haver semelhanças entre a crença no progresso dado pela razão e uma consulta ao horóscopo

Olgária Matos

As Estrelas Descem à Terra é o estudo de Adorno sobre horóscopo e superstição. Reunindo resultados empíricos da pesquisa sobre Autoridade e Família, de 1936, e os Estudos Sobre o Caráter Autoritário, de 1950, sua fundamentação teórica se encontra na Dialética do Esclarecimento, de 1944, e nas Minima Moralia. Publicado nos anos 1950, As Estrelas Descem à Terra é um estudo sobre a Astrologia a partir da coluna semanal do diário Los Angeles Times. Entre 1944 e 1950, o contexto desses escritos foi o exílio americano, no momento em que a 2ª Guerra Mundial estava por terminar, quando Adorno testemunha dois crimes de dimensão industrial, o genocídio dos judeus da Europa e a bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki. Acrescente-se a Guerra Fria que, após 1947, divide o mundo em dois blocos e o ameaça com um terceiro conflito, resultando em perseguições comandadas por McCarthy e o perigo do fascismo também nos Estados Unidos. Considerando o mundo científico e a vida política como um conjunto de defesas contra o medo, a Teoria Crítica responsabiliza a razão pelos sofismas científicos do progresso e pela produção do irracional nos totalitarismos.

Porque o homem tem medo das alturas celestiais e dos abismos do inferno, do lado esquerdo agourento e do espaço infinito, do para sempre e do nunca mais; mas também do escuro e da loucura, dos inimigos e da traição, da censura e da tortura; porque se teme o Mal da natureza e "o que o homem faz ao homem", a razão esclarecida procurou vencer os temores reais e os imaginários, desenvolvendo o conhecimento, na ciência, e organizando a vida ética, a solidariedade e a segurança na política.

Porque a natureza é ameaçadora quando não controlada, porque o presente é contingente e o futuro incerto, mito e razão respondem a essa necessidade de vencer a angústia, protegendo a autoconservação: "Do medo o homem presume estar livre", escrevem Horkheimer e Adorno, "quando não houver mais nada de desconhecido". Para vencer a exterioridade da natureza e a alteridade do mundo, a razão científica "identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento é a angústia mítica radicalizada". Racionalização do medo e mitificação da razão significam que a ciência não vence o medo, mas o transforma em conteúdo do pensamento racional que, para dominar o desconhecido, mobiliza força e poder sobre todas as coisas. Assim como o mito exigia sacrifícios de sangue para aplacar as forças naturais, a ciência moderna considera as catástrofes produzidas pela ciência e pela técnica acidentes de percurso do progresso, e a violência constitutiva de todas as relações: "Não existe continuidade da barbárie à civilização, mas há uma linha reta do estilingue à bomba de megatons." As proposições da ciência são auto-idealizações onipotentes voltadas à autoconservação, presas à natureza imediata governada pela lei do mais forte: "A paranóia", escrevem Adorno e Horkheimer, "é a sombra do conhecimento." Também a política, voltando-se para a autoconservação, torna-se vontade de domínio, como na fusão de teologia e política, baseadas, ambas, na idéia de "proteção": "Os protetores, os condottieri, os senhores feudais, as ligas, sempre protegeram e, simultaneamente, exigiram resgate daqueles que dependiam deles. Cuidavam, dentro de seus domínios, da reprodução da vida."

Nas Minima Moralia e em As Estrelas Descem à Terra, Adorno recusa a sabedoria "burguesa e mefistofélica" de ratificação do Mal existente, a que opera no adágio de que a injustiça é o meio da justiça, e que tudo que existe merece desaparecer. Seria "desolador pensar que no universo infinito não se faça outra coisa senão comer ou ser comido". Essa é, para Adorno, a história da naturalização da violência no interior da cultura e o que inviabiliza perceber que a vida em sua imediatez é inseparável de tudo "que é opressivo e destruidor". A autoconservação é impulso cego de autopreservação que não transcende a ordem adversa da natureza e a da servidão política, prolongando assim seu domínio no interior da cultura que deveria dominá-las.

Desse modo, cartomantes e quiromantes, ocultistas e astrólogos reanimam o mundo explicado pela ciência ao preço da força e do embotamento da razão, com uma "bola de cristal": "A exclusividade das leis lógicas se origina nessa univocidade de função, em última análise no caráter coercitivo da autoconservação. Esta culmina sempre na escolha entre sobrevivência ou morte, escolha essa na qual se pode ainda perceber um reflexo no princípio de que, entre duas proposições contraditórias, uma só pode ser verdadeira e só uma falsa." O mundo criado a sua imagem e semelhança é o da evidência e seu mito da falsa clareza. A crença na idéia de um progresso contínuo se assemelha à consulta ao horóscopo, cuja poder de atração é o mesmo do mito e da ideologia, com sua "racionalidade irracional". Adorno encontra aqui as condições provedoras de atitudes irracionalistas e a proliferação de personalidades autoritárias, ressentidas e manipuladoras: "A superstição, a crença em determinações místicas ou fantásticas do destino do indivíduo, tal como a estereotipia, podem ser compreendidas como expressões da fraqueza do Ego."

O desencantamento da cultura e o advento da indústria cultural correspondem à desauratização do papel filosófico e existencial do saber em suas possibilidades de utopia e emancipação. Sob o domínio do medo e da perda do domínio sobre a própria vida – uma vez que os homens produzem pacificamente os meios de destruição social – retorna o teológico-político e o poder da transcendência sobre ações e deliberações. Pense-se na ideologia da racionalidade tecnológica e seus especialistas; na desvalorização de todos os valores e na queda de todos em valor de troca; na cultura filistéia e no pensamento por tickets; na indústria cultural e na cultura do entretenimento; na política convertida em prestação de serviços; no horóscopo e na vedetização da política, na "escalada da insignificância" e no colunismo social. Fim portanto do ideário de maioridade intelectual e política com a conseqüente infantilização da sociedade e seu desejo de tutela. Astrologia e horóscopo, pois. Importa a Adorno o cruzamento de horóscopo, superstição e personalidade autoritária, pois a astrologia possui, para ele, a mesma estrutura do anti-semitismo, a meio caminho entre "realismo e fantasias paranóicas": "A projeção é um meio que permite ao Id resguardar o comando sobre o ego alienado. O indivíduo antidemocrático está disposto a ver no mundo externo pulsões que ele mesmo reprimiu – complôs, conspirações e o perigo de catástrofes naturais – e tanto mais fortes quanto maiores as necessidades inconscientes de sua destrutividade."

Conhecida como "astrologia política", há muito na Alemanha ela auxiliava o exercício do poder – Rudolph Hess era um praticante, Himmler um partidário, Hitler se cercava de astrólogos. O horóscopo é, para Adorno, uma superstição de "segunda mão", agora relacionada com a indústria da cultura que "duplica a astrologia na consciência dos homens". Com efeito, na doutrina astrológica, a vida social é destino de que o homem pode escapar se guiado pelos bons conselhos do horóscopo. Ele indica ocasiões favoráveis para as finanças ou na profissão. Deste modo, o capitalismo é astrológico – a economia já está predeterminada nas estrelas, é previsível, as crises são "cíclicas". Também o mito é astrológico, pois no horóscopo o mundo tal qual é já está confirmado desde sempre, o mito narrando as origens e orientando as regras da vida econômica: "A superstição indica a tendência de se retirar a responsabilidade do indivíduo para colocá-la nas forças transcendentes sobre as quais não se tem nenhum controle." É preciso reconhecer, é claro, que nas sociedades industriais modernas a capacidade de o indivíduo determinar o que lhe acontece realmente diminuiu. "Em meio à cultura do pânico, do delírio fascista, da racionalidade instrumental, a paixão horoscópica e o pensamento por clichês revelam a Adorno a disposição paranóica e a hostilidade a toda figura da alteridade, manifestas, no caso, no racismo anti-semita. Entre o iluminismo instrumental e o mítico, Adorno indica uma outra razão, que não é roda da fortuna nem pensamento mágico administrado, que não adere ao status quo científico e político, mas é virtù que libera da violência e do medo. Na luta entre hermetismo e razão científica, não se trata nem de "Alexandria", nem de "Atenas", mas de uma ação "audaz e prudente". Na busca "da delicadeza perdida", Adorno reserva para uma Teoria renovada a tarefa da crítica e da emancipação, porque as obras de pensamento conformam o caráter compassivo e aprimoram o homem. Como em Dante que escreveu: "Relembrai vossa origem, vossa essência: criados não fostes como brutos, mas para seguir virtude e consciência."

Olgária Matos é filósofa

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Fonte: Via Moderna (Edson Gil)

 

Heidegger ou A Saga do Ser

Quem quiser entender um pensador, deve levar também em consideração o mundo do qual ele procede. Isso vale particularmente para Martin Heidegger; sua origem o acompanhou ao longo de sua vida. Ele vem do sul da Alemanha, tendo nascido em Messkirch em 1889. Passa quase toda a vida na Floresta Negra ou aos pés dela, em Friburgo. Na encosta de Feldberg, possui uma choupana, parcamente equipada com bancos de madeira e camas de simplicidade espartana; a água tem de ser tirada de um poço situado nas proximidades. Com freqüência, Heidegger senta-se longamente no banco diante da casa e contempla a amplidão das montanhas e o movimento silencioso das nuvens, enquanto os pensamentos amadurecem nele. Ou entretém-se na taberna com os vizinhos camponeses, no modo intermitente de conversação próprio dessa região, sobre coisas que lhes dizem respeito. Mas o caráter alemânico não se apresenta apenas na inclinação de Heidegger pela paisagem e pelos homens da Floresta Negra. Manifesta-se também em sua índole espiritual: no pensamento pesado, reflexivo, na profundidade meditativa, na solidão que o circunda, na leve melancolia que ele emana.

Até a aparência desse homem tem em si algo de camponês. Conta-se que, certa vez, um filósofo vienense havia feito uma conferência sobre Heidegger e, depois, declarado que tinha certeza de ter falado claro o suficiente, visto que um pequeno camponês na primeira fila o teria fitado o tempo todo com um ar de compreensão. Mas, ao final, constatou-se que o “pequeno campônio” era Heidegger. Isso pode ser apenas uma lenda, mas quando se vê em fotografias como Heidegger, que não era de estatura alta, caminha pesadamente pela pradaria alpestre, num traje concebido segundo as idéias folclóricas do movimento da juventude, com o gorro de ponta na cabeça, percebe-se imediatamente o vínculo que ligava esse filósofo à terra. Essa ligação também o levaria a dispensar, por duas vezes, uma honrosa convocação à Universidade de Berlim; temia o ruído e a vida cultural da grande cidade e preferia permanecer na então tranqüila Friburgo ou percorrer a “senda”, cuja “consolação” descreve em uma obra difícil.

Em seus anos de juventude, Heidegger foi um esquiador entusiasta e exímio. Para quem esteve presente, é inesquecível a ocasião em que o filósofo dirigiu o seu seminário sobre Platão no Feldberger Hof e, em seguida, lançou-se à pista para ministrar aulas de esqui. Com efeito, podia haver pequenos incidentes. Certa vez, Heidegger caiu na neve quando fazia uma simples curva, arriscando-se, assim, a perder seu prestígio de mestre. Essa escorregadela parece tê-lo atingido mais profundamente do que qualquer eventual deslize filosófico. Paralisados, os alunos aguardaram o que aconteceria. O próprio Heidegger parecia perturbado. Mas, então, com uma manobra brilhante, pôs-se ele — e o mundo — de novo em ordem.

Como professor, não tanto de esqui mas sim de filosofia, Heidegger exerceu uma grande influência. Fala sem nenhuma afetação, sem truques retóricos e sem expressões supérfluas, com uma voz cansada, algo rouca e gutural, acentuando cada palavra, freqüentemente também em frases desconexas. Mas suas palavras provocam uma forte fascinação. Quando dá suas aulas ou faz conferências, qualquer auditório é muito pequeno. Em seus seminários, os alunos aprendem o esforço de um pensar sempre voltado para as coisas mesmas, que não se esquiva de nenhum problema e que desdenha toda resposta apressada. Heidegger atua dessa maneira já nos anos de juventude como docente em Friburgo, depois, como professor de filosofia em Marburgo e, de novo, em Friburgo. Antes de tudo, em seus primeiros tempos de ensino, ocupa-se intensamente com seus alunos, que em grande parte assumiriam as cátedras de filosofia mas, também, de teologia e de outras ciências. Estes recordam-se ainda das muitas festas na casa de Heidegger, com cortejo à luz de lampião pelo jardim e com entoação de cantigas populares, mas também com discussões profundas.

Para Heidegger, o pensamento não deve meramente permanecer em si mesmo, mas tem de intervir na existência, particular e pública, transformando-a. Isso confere uma grande vitalidade ao seu pensamento, mas o conduz também a considerar, por um breve tempo, que sua idéia da resistência heróica do ser-aí (Dasein) diante da morte seria realizada no nacional-socialismo. Por causa desse equívoco, perde a sua cátedra e, a partir daí, mantém-se longe da política contemporânea. Nos últimos anos, retira-se quase totalmente da vida pública, comparecendo apenas em círculos esotéricos. Mesmo assim, continuaria dando testemunho da força e profundidade de seu pensamento.

A influência filosófica de Heidegger teve dois momentos culminantes: primeiramente, em torno dos anos vinte e, depois, no período seguinte à 2.ª Guerra Mundial. O primeiro período é iniciado com a publicação de Ser e Tempo, um livro que, apesar de ter sido editado apenas em sua primeira metade, cai como um raio na paisagem filosófica. Para Heidegger, proveniente da teologia católica e do neokantismo, significa a irrupção de seu pensamento mais próprio, pelo qual vinha trabalhando, não sem influência do grande fenomenólogo Edmund Husserl, a quem, de fato, o livro é dedicado.

Em Ser e Tempo, trata-se para Heidegger de reacender aquilo que Platão denominou a “batalha de gigantes acerca do ser”. Sua pergunta central é a seguinte: O que é o “sentido do ser”? A que visamos quando pronunciamos a palavra “é”, ou seja, quando dizemos: a árvore “é”, o homem “é”, Deus “é”? Essa pergunta parece ser, a princípio, um problema abstrato de uma determinada disciplina filosófica, a ontologia. Considerando-a mais de perto, contudo, percebe-se que conduz à profundidade das razões e dos abismos do pensamento. “Com a pergunta pelo ser, arriscamo-nos à margem da total escuridão.”

Mas como se pode dar andamento a essa pergunta? E mais: Onde se torna acessível ao homem o ser, pelo qual pergunta? Heidegger responde: no entendimento do ser. Portanto, no fato de que o homem, de algum modo, já entende desde sempre o que o ser significa. Esse entendimento expressa-se na linguagem, mas também na lida cotidiana com as coisas e no trato com os outros homens.

Para esclarecer o entendimento do ser, Heidegger, em análises minuciosas, fala do homem como o lugar do entendimento do ser. Não se baseia, aí, em um conceito abstrato de homem, mas no homem concreto, empírico e em seu auto-entendimento e auto-experiência. Também não considera o homem de um ponto de vista fora dele mesmo, por exemplo, de Deus ou de um espírito absoluto, mas tal como ele aparece, em sua própria perspectiva, a si mesmo. Sob esse ponto de vista, Heidegger mostra que o homem não está aí simplesmente como uma pedra ou uma árvore, mas tal como ele vive nas e das possibilidades no sentido das quais ele se projeta. Heidegger também não abandona o homem no isolamento artificial, em que a filosofia moderna, desde Descartes, está acostumada a vê-lo. Contrariamente, fala de como cada homem tem “seu” mundo, de como ele existe entre outros entes e com outros homens; fala de seu “ser-no-mundo” e de seu “ser-com-outros”.

Nessa concepção, o homem possui em relação a todos os outros entes a prerrogativa de que o mundo, que sem sua intervenção permaneceria fechado, abre-se por meio dele, sendo visto, reconhecido e sentido. Por meio do “irrompimento do homem na totalidade do ente”, este se torna “manifesto”. A isso, Heidegger denomina a “transcendência” da existência humana. Essa expressão não significa que o homem se refira a uma essência ou a um mundo supra-sensíveis. Na terminologia de Heidegger, transcendência quer antes dizer que o homem já tem desde sempre ultrapassado todo ente, com vista ao ser que, por assim dizer, constitui o horizonte de todo entender, sentir e conhecer. O mesmo significa para Heidegger a expressão “existência”, que freqüentemente emprega na forma “ec-sistência”. Existência não significa o mero ser-aí do homem, ou seja, o fato de estar simplesmente presente como uma pedra ou uma árvore. Existência quer dizer que o homem realmente é no modo do existir, do ec-sistir, do estar fora de si mesmo, isto é, do estar fora no ser já desde sempre entendido.

Na interpretação mais precisa do ser-no-mundo, Heidegger toma por base a situação cotidiana do homem. Este não está, a princípio, em si mesmo, mas encontra-se à mercê do mundo; o homem não é ele mesmo, mas aquilo que “Se” é; está entregue ao “Se”. Mas sua tarefa é sair desse constrangimento e tornar-se em verdade ele mesmo. Isso se torna claro em certos estados básicos de ânimo, que manifestam ao homem como, no fundo, vão as coisas para ele e que, por meio disso, o arrancam de seu vegetar irrefletido e de suas ilusões. Entre as disposições afetivas fundamentais, Heidegger designa — seguindo Kierkegaard — a angústia como a mais importante. Quem está preso a ela, deixa que toda a realidade se lhe escape. No medo, o homem é confrontado com a inevitabilidade da morte e com a possível nulidade do mundo. Por isso, no medo também caem todo amparo provisório e todo velamento evidente; o homem percebe-se como “lançado à morte” e como “detido no nada”. A consciência, então, enquanto “chamado da inquietude do ser-aí”, arranca o homem de seu constrangimento no dia-a-dia, de sua sujeição à inautenticidade e o conduz, desvelado, diante da possibilidade de seu si mais próprio e autêntico. Esse si há que ser por ele realizado em liberdade, em uma decisão essencial. O homem torna-se ele mesmo na “decisão pronta para a morte” e na assunção de sua “existência nula”; torna-se ele mesmo enquanto se decide a existir não segundo leis estranhas, mas com base em si mesmo, em seu próprio fundamento.

Não admira que essa imagem do homem tenha sensibilizado o período entre-guerras. Pois, aqui, seu abismo e sua ameaça interior parecem obter a mais profunda explicação filosófica e, simultaneamente, a perspectiva de uma saída justificada no pensamento. Assim, também é compreensível que Heidegger se tenha posto, de um só golpe, no topo do movimento filosófico daqueles anos e que lhe afluíssem alunos e seguidores de todos os lados.

Mas, para Heidegger, não se trata meramente de descrever a situação humana. Ele se pergunta sobre qual significação teriam as circunstâncias existenciais apresentadas para a questão da essência do homem. Como estrutura fundamental do ser-aí humano, destaca a temporalidade. Isso conduz a uma nova interpretação do muito discutido fenômeno do tempo. Este não é um esquema no qual se dão acontecimentos; originariamente, ele não é absolutamente nada de objetivo. O tempo é, muito mais, própria e essencialmente, a temporalidade do ser-aí humano. Adiantando-se à sua morte, mas também em toda atividade cotidiana, o homem está “adiante de si”; deixa seu futuro vir a si e determinar seu ser-aí presente, projetando-se, assim, no sentido de suas possibilidades futuras. Simultaneamente, o homem é determinado e dominado, em todo instante, por seu passado; está lançado em seu ser-aí concreto, sem sua intervenção. Isso constitui seu “já ser em”. Enfim, ele está presente enquanto apresenta constantemente o ente que o circunda; pertence a sua essência o “ser junto”. Esses três momentos, ou seja, o “adiante-de-si”, o “já-ser-em” e o “ser-junto” constituem a temporalidade específica do ser-aí humano. São os seus “êxtases”: os modos pelos quais o homem se encontra fora de si mesmo e realiza sua finitude essencial. Constituem também a origem de seu saber acerca do tempo.

Após Ser e Tempo, aparece em rápida seqüência uma grande quantidade de escritos de Heidegger. Ocupam-se, em parte, com a história da filosofia, com Anaximandro, Platão, Descartes, Kant, Hegel e, antes de tudo, com Nietzsche, de cujo pensamento polissêmico são descobertos novos e surpreendentes aspectos. Outras publicações contêm interpretações de poetas e obras poéticas; Hölderlin, em especial, é tema, mas também Rilke e George, Trakl e Benn. Problemas da fundamentação de um pensar novo são explanados na conferência, que causou sensação, Que é Metafísica?, na Carta sobre o Humanismo e no profundo ensaio Identidade e Diferença. Finalmente, Heidegger também toma posição em relação a algumas questões gerais que, justamente hoje, são especialmente urgentes: a linguagem, a arte, a essência da técnica.

A virada (Kehre) do pensar

Em todos esses escritos, fica claro que Heidegger compreende que, pelo caminho tomado inicialmente, passando pelo homem e seu ser-aí, não é possível chegar aonde seu pensamento almejava: o ser. Desse modo, agora se impõe a tarefa de inverter o ponto de vista: não mais pensar o ser com base no homem e em seu entendimento do ser, mas considerar o homem e toda a realidade finita com base no ser. Isso se expressa na exigência de Heidegger de uma “virada (Kehre) do pensar”. Acerca da questão de como essa guinada seria possível, Heidegger esforça-se em luta solitária por décadas afora.

Uma compreensão essencial nesse percurso de pensamento é que, quando se trata do ser, só se pode falar do homem secundariamente. Por isso, Heidegger despoja o homem da posição central que este adquiriu no subjetivismo moderno e no existencialismo contemporâneo. Vista desta perspectiva, a técnica, que caracteriza de modo essencial o presente, também é um equívoco: constitui o último triunfo da subjetividade, porque nela e por ela o homem se assenhoreia despoticamente do mundo. Contudo, afirma o último Heidegger, não se pode falar do homem como de um ente autônomo, mas apenas em conexão com o ser; ele lhe é subordinado. Tudo depende do ser. O fato de que o homem exista não tem significação devido a ele mesmo, mas por causa do ser: apenas porque e enquanto se possa cumprir, por meio do homem, a manifestação do ser.

Mas, afinal, o que é esse ser para o qual Heidegger aponta de tantas maneiras? Fala dele freqüentemente em palavras quase místicas: “Mas o ser — que é o ser? É ele mesmo. Para perceber e dizer isso, o pensamento futuro terá de aprender.” Com isso, porém, se torna ainda mais obscuro o que Heidegger entende por “ser”. Se, mesmo assim, se procura um esclarecimento, deve-se antes de tudo observar que ele refuta expressamente a tentativa de conceber o ser como um deus ou um fundamento do mundo. E mais: para Heidegger, o ser não é absolutamente redutível ao ente; não se deve de modo algum pensá-lo como objeto. Heidegger atribui a isso a maior importância. Afirma que se tem de considerar, antes de todas as outras, a diferença entre ser e ente: “a diferença ontológica”, “a duplicidade de ser e ente”. Segundo a concepção de Heidegger, toda a metafísica “esqueceu-se” dessa diferença; em decorrência desse esquecimento, a metafísica teria incorrido no “error”. Heidegger atribui graves conseqüências a esse erro, vendo nele nada menos que a raiz da “sina do ocidente”.

Mas, positivamente falando, o que é o ser? Para Heidegger, ser significa tanto quanto manifestação, desvelamento. O homem diz de uma coisa que ela “é” e que “é” assim como “é”, quando essa coisa e as circunstâncias em que ela se encontra, forem manifestas e evidentes para ele. “Ente” não significa, para Heidegger, o estado da simples presença. “Ente” quer dizer, antes, o estado de desvelado, de iluminado, de manifesto. E o “ser” é, justamente, esse processo de iluminação, da “clareira”.

Porém, como sucede esse manifestar-se do mundo? A primeira resposta de Heidegger é que a manifestação do mundo se dá pela descoberta do nada. Não encontrássemos o nada, que se nos depara, por exemplo, na angústia, e não experimentássemos que todo ente também poderia não ser, enquanto o nada nos deixa escapar o mundo em sua totalidade, então não nos daríamos conta de que é. “Na noite clara do nada da angústia, apenas, é que suscita a originária manifestação do ente enquanto tal: que o ente é — e não o nada.” A urgência da questão do ser, mas também a possibilidade de se aproximar do ser, surge, portanto, da experiência do nada.

Portanto, o fator decisivo para a perspectiva de Heidegger é que o nada não é conduzido pelo homem, mas sobrevém-lhe, acomete-o assim como a angústia. Expresso de modo não de todo adequado, isso significa que o nada se torna ele mesmo ativo. Heidegger formula-o assim: “O nada nadifica”. Não deve, contudo, ser representado como um sujeito metafísico. O nada é um processo; não é outra coisa do que o acontecimento do vir-a-ser nadificado enquanto tal.

Com isso, porém, Heidegger ainda não chegou ao ser, ao qual se dirige, de fato, seu esforço. A questão é, por isso, se o nada é a última coisa que o homem pode experienciar e se, em conformidade com isso, o niilismo universal não devesse ser o verdadeiro modo de pensar. Heidegger responde negativamente. O niilismo, porquanto não possa ser negado como destino do homem ocidental, não é, contudo, nenhum domicílio duradouro do homem. Isso resulta da própria essência do nada: ele é apenas “o véu do ser”. Assim, a questão tem de passar adiante e verificar se não seria possível avistar o próprio ser por trás do nada.

Para Heidegger, portanto, o ser tem a mesma estrutura fundamental que o nada. É um acontecer, um “acontecimento fundamental”, um “evento”. Tanto quanto o acontecer, deve-se entender o ser verbalmente. Como já aludimos, o ser é o acontecer abrangente, no qual o ente e o homem vêm a ser manifestos. Ser é desvelamento em processo. Ser cumpre-se, isto é: no mundo faz-se a luz em múltiplos modos. Ser é tornar-se iluminado. Então, o mais importante é que, enquanto “clareira”, o ser envia-se por si mesmo ao homem histórico. Portanto, para o ser vale o mesmo que para o nada, ou seja, que ele não vive da graça do homem, mas é operante por si mesmo. O ser não é “nenhum artefato do homem”; é o verdadeiro sujeito no acontecer da manifestação do mundo. A ele cabe a autêntica iniciativa. Não se realiza por causa do homem ou do ente mas, pura e exclusivamente, por causa de si mesmo: traz seu sentido em si mesmo.

Desse modo, nas épocas singulares da história, o ser torna manifestos o ente e o homem nos aspectos mais diversos. Por isso, Heidegger fala de uma “história do ser”, que não é nada mais que o ser no ato de sua consumação. Para os chineses ou para os gregos ou na Idade Média, por conseguinte, ser significa algo diverso que para o homem moderno. Para este, o ser se exterioriza primordialmente de um modo negativo porque o homem contemporâneo se atém demasiado ao ente. Assim, o ser apresenta-se a ele principalmente no “estremecimento de todo ente” e na “expatriação”. Isso se manifesta, antes de tudo, no destino que, enquanto essência alienante da técnica, sobreveio ao homem atual ou que, ainda, lhe foi enviada pelo ser mesmo. Em nosso tempo, o ser mesmo está quase esquecido; o presente é o tempo do “esquecimento do ser”, do “abandono do ser”. Justamente por essa razão, este é o tempo do “niilismo”, pois é a “história da ausência do ser”.

Mas mesmo esse destino atual do ser, caracterizado pelo extremo esquecimento do ser, pode ser superado. Em todo caso, não pelo homem e por sua intervenção. É necessário que o ser, de si mesmo, volte-se novamente para o homem, que se torna errante, e que, assim, torne-se possível uma nova experiência do ser. Essa é a esperança de Heidegger para o futuro. Para o momento, porém, importa que o homem não se descuide do “escutar” do “chamado do ser” e que, assim, possa ter novamente a experiência de que é o “pastor do ser”. O homem tem de fazer que o ser se manifeste na linguagem; tem de deixar a “saga do ser” falar alto e bom som: essa é sua suprema tarefa, em que encontra sua dignidade essencial. Mas, por outro lado, o sucesso dessa missão não depende, em último caso, do homem. “O advento do ser repousa no destino do ser.”

Se isso acontece em toda seriedade, então — assim acredita Heidegger — torna-se possível que a noite da “distância de Deus”, em que vivemos no presente, seja superada. Então pode acontecer que um novo deus apareça na luz do ser. Alcançando a “proximidade do ser”, o homem chega aonde se dá a decisão “se e como o deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e como, na aurora do sagrado, uma nova aparição do deus e dos deuses pode começar”. Mas, por outro lado, isso não é assunto do homem, mas do próprio ser.

Falar sobre isso já não pertence, todavia, às possibilidades da filosofia em sentido tradicional. Heidegger tem consciência disso. “O pensamento futuro não é mais filosofia. Está no descenso para a pobreza de sua essência provisória. O pensamento recolhe a linguagem no simples dizer.” No presente momento, contudo, o que importa para o homem é aprender a paciência “de existir no inominado”.

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