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Archive for the ‘Machado de Assis’ Category

O ensaísta José Miguel Wisnik lança o livro Machado Maxixe: O caso Pestana (Publifolha, 2008) a partir da leitura do conto "Um Homem Célebre" (1888) (Leia o conto aqui no blogue), de Machado de Assis (e veja outros contos e artigos sobre o nosso Machadão). O ensaio foi publicado originalmente no livro Sem receita – ensaios e canções, da mesma editora. O autor mergulha nas origens da polca, estilo musical e de dança de salão importada, e a música de escravos brasileiros que, misturadas, dão origem ao maxixe.

José Miguel Wisnik é professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo, autor de (entre outros) O Coro dos Contrários – A Música em Torno da Semana de 22 (Duas Cidades, 1977), O Som e o Sentido – Uma Outra História das Músicas (Companhia das Letras, 1989), compositor, cantor, letrista e autor de trilhas para balés e peças de teatro.

Capa do Livro Machado Maxixe: O Caso Pestana
José Miguel Wisnik
Editora: Publifolha
96 páginas
R$ 19,90

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Oquê? Adaptações audiovisuais da obra de Machado de Assis.

Quando? dia 21/11 – sexta-feira,  às 20h.

Onde? Centro Cultural Vergueiro –

Entrada franca (a bilheteria será aberta com uma hora de antecedência) Sala Lima Barreto (110 lugares).

Mais informações:
Adaptações audiovisuais da obra de Machado de Assis – Machado em novas versões: o romance no cinema
com: Gilberto Figueiredo Martins (professor doutor pela UNESP/ASSIS).

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Roberto Schwarz – NOVOS ESTUDOS N.º 11

Texto completo pode ser obtido clicando aqui (mas, pelo que li, o texto não é tão compleo assim: só tem o primeiro capítulo, que trata, justamente, do primeiro capítulo do Memórias. Bom, aí a culpa não é minha! – mas vale a pena lê-lo)

A estridência, os artifícios numerosos e a vontade de chamar atenção dominam o começo das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). O tom é de abuso deliberado: o título do livro é um contra-senso, pois não é possível escrever depois de morto; a dedicatória saudosa ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver, arranjada em forma de epitáfio, é outro desrespeito; mesma coisa para a intimidade forçada com que se prometem “piparotes”1 ao leitor, caso a obra não lhe agrade; por fim, a idéia que vem a Brás Cubas de comparar a sua literatura à de Moisés, no Pentateuco, para gabar a originalidade da primeira,

dispensa comentários. Em suma, trata-se de um show de impudência, em que as provocações se sucedem, numa gama que vai da gracinha à profanação.

A persistência no abuso, sem a qual as Memórias ficariam privadas de seu ritmo próprio, do ponto de vista técnico realiza-se através de intromissões do narrador, que a todo momento invade a cena e “perturba” o curso de seu romance. Estas intervenções, que são o recurso machadiano mais saliente e famoso, são elas também expressão de arbitrariedade. A crítica as tratou como traço psicológico do autor, deficiência narrativa, superioridade de espírito, empréstimo inglês, metalinguagem, nada disso estando errado.

Neste ensaio, serão vistas enquanto forma, tomado o termo em dois sentidos: a) como regra de composição da narrativa; e b) como estilização de uma conduta própria à classe dominante brasileira. No romance machadiano praticamente não há frase que não tenha segunda intenção ou propósito espirituoso. A prosa é detalhista ao extremo, sempre à cata de efeitos imediatos, o que amarra a leitura ao pormenor e dificulta a imaginação do panorama. Em conseqüência, e por causa também da campanha do narrador

para chamar atenção sobre si mesmo, a composição do conjunto pouco aparece. Entretanto ela existe, e se tomarmos distância enxergaremos no seu traçado as grandes linhas de uma dinâmica social.

São estas que dão a terceira dimensão, ou integridade romanesca, ao brilho algo fácil dos gracejos de primeiro plano. Difícil de precisar, esta consistência é um segredo da obra machadiana. Depois de fixá-la, tentaremos uma interpretação, que vai nos levar a circunstâncias brasileiras.

1O famoso “cascudo”, “peteleco”

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Uns Braços1

INÁCIO ESTREMECEU, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato
que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de
nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.
— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai,
para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou
um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco!
— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se
para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos.
Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a
outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De
manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. .
Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges
espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não
era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça
inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que
quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não
destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova,
e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges,
com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de
causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o
ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se
para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado.
Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato,
nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível
Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele
pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de
tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus,
constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio
palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na
verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa
que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo
explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara
todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando,
tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde,
além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era
bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado
consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no
alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço,
um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos
e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da
algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os
restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D.
Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio;
mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a
toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os
olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S.
João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse
com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o
austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não
via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os
braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou
porque andasse com eles impressos na memória.
— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.
Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como
de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto
de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que
davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das
montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que
lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a
primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas
que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges,
andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao
distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e
recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe
dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem
Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas
de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas
de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.
"Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina.
Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe
permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os
olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras
mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três
semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso.
Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do
silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por
dia, o famoso par de braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não
tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio
do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia
logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas:
por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha
quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um
princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não
era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E
recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um
incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
— Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo
de alguns minutos de pausa.
— Não tenho nada.
— Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu
sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente
incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina
interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava
pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não
iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado,
trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a
comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao
colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e
contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito
fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o
caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam
irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da
rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa
fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realrnente um trabalhador de
primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na
sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a
impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só
conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia
entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador,
e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou:
realmente, não havia mais que suposção, coincidência e possivelmente
ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as
atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de
estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau
acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de
observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas.
Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de
Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o
rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar
melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e
temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um
sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D.
Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu
que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e
outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de
o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio
começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto
como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía
brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo,
tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça
dele; mas tudo isso era curto.
— Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavamlhe
um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava,
e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo
céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve
de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da
voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho.
Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água
fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe,
que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou
ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o
solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso
engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que
D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era
menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem
entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite,
pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas,
muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não
trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho,
sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no
topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como tendo
acudido a ver quem era.
Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no
quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que
faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam
somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um
imenso domingo universal.
Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três
folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão,
debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava
cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera;
estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e
começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas
velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade
é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos
na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados.
O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as
pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a
rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que
houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente
ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à
janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho
da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora
do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que
estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois caminhou
até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra
vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco
ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser
até que estivesse muito mal.
Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do
mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com
ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A
cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos
fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude.
D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara
de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde
madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma
tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco
minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma
expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. "Uma criança!"
disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos
conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em
parte a turvação dos sentidos.
"Uma criança!"
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço
caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito
mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra.
De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta
do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando
devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a
criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer mudar de posição. E
ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia
visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede,
risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito,
cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda
assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas,
— ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto
que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar
logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o
corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinavase,
pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que
inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um
beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na
imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real
tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa.
Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente
para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum
rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o
medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria
os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o
medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de
crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de
que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem
imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como
fosse, estava confusa, irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O
medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deulhe
um calefrio.
Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar.
Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o
solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a
severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia
consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina
tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e
na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou
dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o
tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
— Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.
— Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .
— Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois
despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa
mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão
bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Tanto
pensou que acabou supondo de sua parte algurn olhar indiscreto, alguma
distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale
que cobria os braços tão bonitos… Não importa; levava consigo o sabor do
sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e
longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da
Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber
que se engana:
E foi um sonho! um simples sonho!
FIM

 

1Fonte:

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br&gt;

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as

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Um Homem Célebre1

— AH! o SENHOR é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo
um largo gesto admirativo. E logo depois, corrigindo a familiaridade: —
Desculpe meu modo, mas. .. é mesmo o senhor?
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele. Vinha do
piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça
o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte
pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, Rua do Areal,
naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875… Boa e patusca
viúva! Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e
foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876.
Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças,
logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem
foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao
piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva
correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.
— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não Bula Comigo, Nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem
gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros
compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram
às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. Da moda, tinha
sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não
fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola
noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à
mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé,
cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo
Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano,
acabada a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu
aborrecido e vexado. Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e
tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as
cada vez mais enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para
sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe
remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.
Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só
afrouxou, depois que dobrou a esquina da Rua Formosa. Mas aí mesmo
esperava-o a sua grande polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a
poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas
em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns instantes, pensou em
arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e
seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas foram-se perdendo, ao
longe, e o nosso homem entrou na Rua do Aterrado, onde morava. Já perto
de casa, viu vir dois homens: um deles, passando rentezinho com o Pestana,
começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a
tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o
autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou. Casa velha. escada velha. um preto velho que o servia,
e que veio saber se ele queria cear.
— Não quero nada, bradou o Pestana: faça-me café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. Quando o
preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou
uns dez retratos que pendiam da parede. Um só era a óleo, o de um padre,
que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos,
era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe deixou em herança aquela casa
velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns
motetes o padre, era doudo por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu
no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as
bocas vadias, cousa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart,
Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns, gravados,
outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas
postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o evangelho da
noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano.
Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem
saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a
peça, depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas.
Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do
mesmo modo, com a alma alhures. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda
xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e
olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando
ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse
algum pensamento mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostarse
à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no
céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu
tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras.
Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de
Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia, pensando
nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a idéia conjugal tirou à
moça alguns momentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em
trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o
autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras
clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao
diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora
de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas
era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os
dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de
Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se
estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas
de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar.
Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar
carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a
imitá-lo ao piano.
Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado,
desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. Pouco dormiu;
acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.
— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto,
segundo as ordens que tinha. porque as distrações do senhor eram
freqüentes.
— A bengala.
— Mas parece que hoje chove.
— Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
— Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.
Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
— Espera aí.
Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no
teclado. Começou a tocar alguma cousa própria, uma inspiração real e
pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma
repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-
as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo.
Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a
bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente
da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da
véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de
Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como
de uma fonte perene.
Em pouco tempo estava a polca feita. Corrigiu ainda alguns pontos,
quando voltou para jantar: mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou
dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da
vocação. Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que
andariam já por umas trinta. O editor achou-a linda.
— Vai fazer grande efeito.
Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em
1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este: Pingos de Sol. O editor
abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à
popularidade, ou por alusão a algum sucesso do dia, — ou pela graça das
palavras; indicou-lhe dois: A Lei de 28 de Setembro, ou Candongas Não
Fazem Festa.
— Mas que quer dizer Candongas Não Fazem Festa? perguntou o autor.
— Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e
guardou a polca, mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da
publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor
parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo
adiante.
Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o
editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele
lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora
Dona, Guarde o Seu Balaio.
— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.
Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações
compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao
gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias,
estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da
composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvila
tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde
logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não
desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia
a Rua do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e
mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de
remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera
consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e
graciosa. E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a
nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma cousa ao
sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser
encadernada entre Bach e Schumann. Vão estudo, inútil esforço.
Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. Noites e noites, gastou-as
assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez
que abrisse mão da música fácil…
— As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia,
de madrugada, ao deitar-se.
Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à
própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que
o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecêlas,
e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. Nessa alternativa
viveu até casar, e depois de casar.
— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu
aquela notícia.
— Vai casar com uma viúva.
— Velha?
— Vinte e sete anos.
— Bonita?
— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque
a ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também
que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.
Os escrivães não deviam ter espírito, — mau espírito, quero dizer. A
sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a
dentadinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma
viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a como a esposa
espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e
do transvio, dizia ele consigo, artisticamente considerava-se um arruador de
horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. Agora, sim, é que
ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e
trabalhadas.
Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou
à primeira aurora do casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que
não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.
Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um
noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A felicidade como que lhe trouxe um
princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto,
trabalhava às escondidas; cousa difícil porque Maria, que amava igualmente
a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos
retratos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas,
amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e
chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era
nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.
— Acaba, disse Maria, não é Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e
ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de
memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o motivo eram os mesmos;
Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha
cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado
da ponte, caminho de S. Cristóvão.
— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas. . . Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como
para um doudo. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre
a ambição e a vocação. . . Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da
estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem
que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.
Poucos dias depois, — uma clara e fresca manhã de maio de 1876, —
eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido.
Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda noite, e
agora dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o
mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um
pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. Maria
não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos
braços do marido, apavorado e desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na
vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores
polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar
de ironia e perversidade. Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os
movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas
composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos,
estendido na cama… Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou
rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-da-colônia e de Labarraque ,
saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a
música, depois de compor um Requiem, que faria executar no primeiro
aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente,
carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e
surda.
Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os
caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o
Requiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere a
princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a
incompleta. não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem
método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses,
nove, dez, onze, e o Requiem não estava concluído. Redobrou de esforços,
esqueceu lições e amizades. Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora
queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco… A aurora do
aniversário veio achá-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. Não se pode dizer se
todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos, foram do
marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou
ao Requiem.
"Para quê?" dizia ele a si mesmo.
Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a
gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
— Nada.
— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho propor-lhe um
contrato: vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma
porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para
saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz
escasso. Aceitou o contrato.
— Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a
carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder, vão
fazer a reforma eleitoral. A polca há de chamar-se: Bravos à Eleição Direta!
Não é política; é um bom título de ocasião.
Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de
silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota
genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos
e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair
em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia
alguma boa ópera ou concerto de artista ia, metia-se a um canto, gozando
aquela porção de cousas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. Uma ou
outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro
inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até
que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.
Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe
definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o
primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a
preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as
alternativas de outro tempo, acerca de suas composições a diferença é que
eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror
depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.
Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até
virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não
sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe
uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o
estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que
instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.
— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé
preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, façolhe
logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou
na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os
homens e mal consigo mesmo.
FIM

 

1Fonte:
ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar 1994. v. II.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística
(http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/literat.html)
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as
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Missa do Galo1

NUNCA PUDE entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos,
contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho
irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em
primeiras núpcias, com uma de minhas primas A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta
acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a
estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os
meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher,
a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos
quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez,
ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas
ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se,
saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um
eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e
dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência
da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito
direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os
esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos,
nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana;
aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela
era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que
chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia
odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já
devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na
Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e
pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três
chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
— Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? pergun-tou-me a mãe de Conceição.
— Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do
Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de
querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e
fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos
voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas,
mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio
acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar;
levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
— Ainda não foi? perguntou ela.
— Não fui, parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco,
mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada
com o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava
defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem
querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
— Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de
dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria
alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse
justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer Já disse que ela
era boa, muito boa.
— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho!
Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo.
— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é muito bonito.
— Gosta de romances?
— Gosto.
— Já leu a Moreninha?
— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que
você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no
espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De
vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar,
não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça,
cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo
sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
"Talvez esteja aborrecida", pensei eu.
E logo alto:
— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu…
— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você,
perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já tenho feito isso.
— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja,
hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o que, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e
as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da
sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com
o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não
sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu
tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina
ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a
mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar
acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e
não queria perdê-la.
— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na
Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio…
Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o
rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e
eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor.
A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém,
a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade,
podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o
livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que
me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou
tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de
brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco
e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um
pouco a voz, ela reprimia-me:
— Mais baixo! mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras.
Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dous, eu mais que
ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco
franzida. Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do
meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo
que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram
pretas. Conceição disse baixinho:
— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não
pegava no sono.
— Eu também sou assim.
— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da
coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na
cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
— Foi o que lhe aconteceu hoje.
— Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse Pegou das pontas do
cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as
pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em
criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem
que eu desse pela hora nem pela rnissa Quando eu acabava uma narração ou uma
explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na
palavra. De quando em quando, reprimia-me:
— Mais baixo, mais baixo. . .
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos,
cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse
fechado para ver rnelhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua
pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há
impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalhome.
Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas simpática,
ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis
levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar
sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de
frio voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista
pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da
parede.
— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um
representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares
ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos, disse eu.
— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens,
duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e
naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é
que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o
que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha
madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está
no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo.
Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com
doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a
missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas
anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase
sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das
canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me
contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não
tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
— Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer
que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação;
fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a
idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para
Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O
rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela
espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar
devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que
bradava: "Missa do galo! missa do galol"
— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir
acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já serão horas? perguntei.
— Naturalmente
— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando
mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a
missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à
conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da
gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a
como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera.
Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o
escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a
visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do
marido.

 

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EVOLUÇÃO1

CHAMO-ME INÁCIO; ele, Benedito. Não digo o resto dos nossos nomes por um
sentimento de compostura, que toda a gente discreta apreciará. Inácio basta. ContentemseEvolução, de Machado de Assis
com Benedito. Não é muito, mas é alguma cousa, e está com a filosofia de Julieta:
"Que valem nomes, perguntava ela ao namorado. A rosa, como quer que se lhe chame,
terá sempre o mesmo cheiro." Vamos ao cheiro do Benedito.
E desde logo assentemos que ele era o menos Romeu deste mundo. Tinha quarenta e
cinco anos, quando o conheci; não declaro em que tempo, porque tudo neste conto há de
ser misterioso e truncado. Quarenta e cinco anos, e muitos cabelos pretos; para os que o
não eram usava um processo químico, tão eficaz que não se lhe distinguiam os pretos
dos outros– salvo ao levantar da cama; mas ao levantar da cama não aparecia a
ninguém. Tudo mais era natural, pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente
do relógio e bengala. O próprio alfinete de diamante, que trazia na gravata, um dos mais
lindos que tenho visto, era natural e legítimo, custou-lhe bom dinheiro; eu mesmo o vi
comprar na casa do… Já me ia escapando o nome do joalheiro;– fiquemos na Rua do
Ouvidor.
Moralmente, era ele mesmo. Ninguém muda de caráter, e o do Benedito era bom,– ou
para melhor dizer, pacato. Mas, intelectualmente, é que ele era menos original. Podemos
compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de
toda sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharemse
ali duas pessoas inimigas, ou simplesmente antipáticas, ninguém brigava, o dono da
casa impunha aos hóspedes a indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar
uma espécie de ateísmo vago com duas irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na
Tijuca ou no Engenho Velho. Usava assim, promiscuamente, a devoção, a irreligião e as
meias de seda. Nunca lhe vi as meias, note-se; mas ele não tinha segredos para os
amigos.
Conhecemo-nos em viagem para Vassouras. Tínhamos deixado o trem e entrado na
diligência que nos ia levar da estação à cidade. Trocamos algumas palavras, e não
tardou conversarmos francamente, ao sabor das circunstâncias que nos impunham a
convivência, antes mesmo de saber quem éramos.
Naturalmente, o primeiro objeto foi o progresso que nos traziam as estradas de ferro.
Benedito lembrava-se do tempo em que toda a jornada era feita às costas de burro.
Contamos então algumas anedotas, falamos de alguns nomes, e ficamos de acordo em
que as estradas de ferro eram uma condição de progresso do país. Quem nunca viajou
não sabe o valor que tem uma dessas banalidades graves e sólidas para dissipar os tédios
do caminho. O espírito areja-se, os próprios músculos recebem uma comunicação
agradável, o sangue não salta, fica-se em paz com Deus e os homens.
— Não serão os nossos filhos que verão todo este país cortado de estradas, disse ele.
— Não, decerto. O senhor tem filhos?
— Nenhum.
— Nem eu. Não será ainda em cinqüenta anos; e, entretanto, é a nossa primeira
necessidade. Eu comparo o
Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas
estradas de ferro
— Bonita idéia! exclamou Benedito faiscando-lhe os olhos.
— Importa-me pouco que seja bonita, contanto que seja justa.
— Bonita e justa, redargüiu ele com amabilidade. Sim, senhor tem razão: — o Brasil está
engatinhando; só começará a andar quando tiver muitas estradas de ferro.
Chegamos a Vassouras; eu fui para a casa do juiz municipal, camarada antigo; ele
demorou-se um dia e seguiu para o interior. Oito dias depois voltei ao Rio de Janeiro,
mas sozinho. Uma semana mais tarde, voltou ele; encontramo-nos no teatro,
conversamos muito e trocamos notícias; Benedito acabou convidando-me a ir almoçar
com ele no dia seguinte. Fui; deu-me um almoço de príncipe, bons charutos e palestra
animada. Notei que a conversa dele fazia mais efeito no meio da viagem– arejando o
espírito e deixando a gente em paz com Deus e os homens; mas devo dizer que o
almoço pode ter prejudicado o resto. Realmente era magnífico; e seria impertinência
histórica pôr a mesa de Luculo na casa de Platão. Entre o café e o cognac, disse-me ele,
apoiando o cotovelo na borda da mesa, e olhando para o charuto que ardia:
— Na minha viagem agora, achei ocasião de ver como o senhor tem razão com aquela
idéia do Brasil engatinhando.
— Ah!
— Sim, senhor; é justamente o que o senhor dizia na diligência de Vassouras. Só
começaremos a andar quando tivermos muitas estradas de ferro. Não imagina como isso
é verdade.
E referiu muita cousa, observações relativas aos costumes do interior, dificuldades da
vida, atraso, concordando, porém, nos bons sentimentos da população e nas aspirações
de progresso. Infelizmente, o governo não correspondia às necessidades da pátria;
parecia até interessado em mantê-la atrás das outras nações americanas. Mas era
indispensável que nos persuadíssemos de que os princípios são tudo e os homens nada.
Não se fazem os povos para os governos, mas os governos para os povos; e abyssus
abyssum invocat. Depois foi mostrar-me outras salas. Eram todas alfaiadas com apuro.
Mostrou-me as coleções de quadros, de moedas, de livros antigos, de selos, de armas;
tinha espadas e floretes, mas confessou que não sabia esgrimir. Entre os quadros vi um
lindo retrato de mulher; perguntei-lhe quem era. Benedito sorriu.
— Não irei adiante, disse eu sorrindo também.
— Não, não há que negar, acudiu ele; foi uma moça de quem gostei muito. Bonita, não?
Não imagina a beleza que era. Os lábios eram mesmo de carmim e as faces de rosa;
tinha os olhos negros, cor da noite. E que dentes! verdadeiras pérolas. Um mimo da
natureza.
Em seguida, passamos ao gabinete. Era vasto, elegante, um pouco trivial, mas não lhe
faltava nada. Tinha duas estantes, cheias de livros muito bem encadernados, um mapamúndi,
dous mapas do Brasil. A secretária era de ébano, obra fina; sobre ela,
casualmente aberto, um almanaque de Laemmert. O tinteiro era de cristal,– "cristal de
rocha", disse-me ele, explicando o tinteiro, como explicava as outras cousas. Na sala
contígua havia um órgão. Tocava órgão, e gostava muito de música, falou dela com
entusiasmo, citando as óperas, os trechos melhores, e noticiou-me que, em pequeno,
começara a aprender flauta; abandonou-a logo, — o que foi pena, concluiu, porque é, na
verdade, um instrumento muito saudoso. Mostrou-me ainda outras salas, fomos ao
jardim, que era esplêndido, tanto ajudava a arte à natureza, e tanto a natureza coroava a
arte. Em rosas, por exemplo, (não há negar, disse-me ele, que é a rainha das flores) em
rosas, tinha-as de toda casta e de todas as regiões.
Saí encantado. Encontramo-nos algumas vezes, na rua, no teatro, em casa de amigos
comuns, tive ocasião de apreciá-lo. Quatro meses depois fui à Europa, negócio que me
obrigava a ausência de um ano; ele ficou cuidando da eleição; queria ser deputado. Fui
eu mesmo que o induzi a isso, sem a menor intenção política, mas com o único fim de
lhe ser agradável; mal comparando, era como se lhe elogiasse o corte do colete. Ele
pegou da idéia, e apresentou-se. Um dia. atravessando uma rua de Paris, dei subitamente
com o Benedito.
— Que é isto? exclamei.
— Perdi a eleição, disse ele, e vim passear à Europa.
Não me deixou mais; viajamos juntos o resto do tempo. Confessou-me que a perda da
eleição não lhe tirara a idéia de entrar no parlamento. Ao contrário, incitara-o mais.
Falou-me de um grande plano.
— Quero vê-lo ministro, disse-lhe.
Benedito não contava com esta palavra, o rosto iluminou-se-lhe; mas disfarçou
depressa.
— Não digo isso, respondeu. Quando, porém, seja ministro, creia que serei tão-somente
ministro industrial. Estamos fartos de partidos: precisamos desenvolver as forças vivas
do país, os seus grandes recursos. Lembra-se do que nós dizíamos na diligência de
Vassouras? O Brasil está engatinhando; só andará com estradas de ferro…
— Tem razão, concordei um pouco espantado. E por que é que eu mesmo vim à Europa?
Vim cuidar de uma estrada de ferro. Deixo as cousas arranjadas em Londres.
— Sim?
— Perfeitamente.
Mostrei-lhe os papéis, ele viu-os deslumbrado. Como eu tivesse então recolhido alguns
apontamentos, dados estatísticos, folhetos, relatórios, cópias de contratos, tudo referente
a matérias industriais, e lhos mostrasse, Benedito declarou-me que ia também coligir
algumas cousas daquelas. E, na verdade, vi-o andar por ministérios, bancos,
associações, pedindo muitas notas e opúsculos, que amontoava nas malas; mas o ardor
com que o fez, se foi intenso, foi curto; era de empréstimo. Benedito recolheu com
muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um
vasto arsenal deles. Nas conversas comigo repetia-os muita vez, à laia de experiência;
achava neles grande prestígio e valor inestimável. Muitos eram de tradição inglesa, e ele
os preferia aos outros, como trazendo em si um pouco da Câmara dos Comuns.
Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem aquele
aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas
formas curtas, tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não
forçam a reflexão, preenchem os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os
homens.
Regressamos juntos; mas eu fiquei em Pernambuco, e tornei mais tarde a Londres,
donde vim ao Rio de Janeiro, um ano depois. Já então Benedito era deputado. Fui visitálo,
achei-o preparando o discurso de estréia. Mostrou-me alguns apontamentos, trechos
de relatórios, livros de economia política, alguns com páginas marcadas. por meio de
tiras de papel rubricadas assim: — Câmbio, Taxa das terras, Questão dos cereais em
Inglaterra, Opinião de Stuart Mill, Erro de Thiers sobre caminhos de ferro, etc. Era
sincero, minucioso e cálido. Falava-me daquelas cousas, como se acabasse de as
descobrir, expondo-me tudo, ab ovo; tinha a peito mostrar aos homens práticos da
Câmara que também ele era prático. Em seguida, perguntou-me pela empresa; disse-lhe
o que havia.
— Dentro de dous anos conto inaugurar o primeiro trecho da estrada.
— E os capitalistas ingleses?
— Que tem?
— Estão contentes, esperançados?
— Muito; não imagina.
Contei-lhe algumas particularidades técnicas, que ele ouviu distraidamente, — ou porque
a minha narração fosse em extremo complicada, ou por outro motivo. Quando acabei,
disse-me que estimava ver-me entregue ao movimento industrial; era dele que
precisávamos, e a este propósito fez-me o favor de ler o exórdio do discurso que devia
proferir dali a dias.
— Está ainda em borrão, explicou-me; mas as idéias capitais ficam. E começou:
No meio da agitação crescente dos espíritos, do alarido partidário que encobre as vozes
dos legítimos interesses, permiti que alguém faça ouvir uma súplica da nação. Senhores,
é tempo de cuidar exclusivamente, — notai que digo exclusivamente, — dos
melhoramentos materiais do país. Não desconheço o que se me pode replicar; dir-me-eis
que uma nação não se compõe só de estômago para digerir, mas de cabeça para pensar e
de coração para sentir. Respondo-vos que tudo isso não valerá nada ou pouco, se ela não
tiver pernas para caminhar; e aqui repetirei o que, há alguns anos, dizia eu a um amigo,
em viagem pelo interior: o Brasil é uma criança que engatinha; só começará a andar
quando estiver cortado de estradas de ferro…
Não pude ouvir mais nada e fiquei pensativo. Mais que pensativo, fiquei assombrado,
desvairado diante do abismo que a psicologia rasgava aos meus pés. Este homem é
sincero, pensei comigo, está persuadido do que escreveu. E fui por aí abaixo até ver se
achava a explicação dos trâmites por que passou aquela recordação da diligência de
Vassouras. Achei (perdoem-me se há nisto enfatuação) achei ali mais um efeito da lei
da evolução, tal como a definiu Spencer,– Spencer ou Benedito, um deles.

 

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A Parasita Azul, de Machado de Assis1

 

CAPÍTULO I

VOLTA AO BRASIL

Há cerca de dezesseis anos, desembarcaram no Rio de Janeiro, vindo da Europa, o Sr. Camilo

Seabra, goiano de nascimento, que ali fora estudar medicina e voltava agora com o diploma na

algibeira e umas saudade no coração. Voltava de uma ausência de oito anos, tendo visto e admirado

as principais coisas que um homem pode ver e admirar por lá, quando não lhe falta gosto nem

meios. Ambas as coisas possuía, e se tivesse também, não digo muito, mas um pouco mais de juízo,

houvera gozado melhor do que gozou, e com justiça poderia dizer que vivera.

Não abonava muito seus sentimentos patrióticos o rosto com que entrou a barra da capital

brasileira. Trazia-o fechado e merencório, como que abafa em si alguma coisa que não é exatamente

a bem-aventurança terrestre. Arrastou um olhar aborrecido pela cidade, que ia se desenrolando à

proporção que o navio se dirigia ao ancoradouro. Quando veio a hora de desembarcar, fê-lo com a

mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere. O escaler afastou-se do navio, em

cujo mastro flutuava uma bandeira tricolor. Camilo murmurou consigo:

– Adeus, França!

Depois envolveu-se num magnífico silêncio e deixou-se levar para terra.

O espetáculo da cidade, que ele não via há tanto tempo, sempre lhe prendeu um pouco a

atenção. Não tinha porém dentro da alma o alvoroço de Ulisses ao ver a terra da sua pátria. Era

antes pasmo e tédio. Comparava o que via agora com o que vira durante longos anos, e sentia mais

e mais apertar-lhe o coração a dolorosa saudade que o mimava. Encaminhou-se para o primeiro

hotel que lhe pareceu conveniente, e ali determinou passar alguns dias, antes de seguir para Goiás.

Jantou solitário e triste, com a mente cheia de mil recordações do mundo que acabava de deixar, e

para dar ainda maior desafogo à memória, apenas acabado o jantar, estendeu-se num canapé, e

começou a desfiar consigo mesmo um rosário de cruéis desventuras.

Na opinião dele, nunca houvera mortal que mais dolorosamente experimentasse a hostilidade

do destino. Nem no martirológico cristão, nem nos trágicos gregos, nem no livro de Jó, havia sequer

um pálido esboço dos seus infortúnios.

Vejamos alguns traços patéticos da existência do nosso herói.

Nascera rico, filho de um proprietário de Goiás, que nunca vira outra terra além da província

natal. Em 1828 estivera ali um naturalista francês, com quem o comendador Seabra travou relações,

e de quem se fez tão amigo, que não quis outro padrinho para o seu único filho, que então contava

um ano de idade. O naturalista, muito antes de o ser, cometera umas venialidades poéticas que

mereceram alguns elogios em 1810, mas que o tempo, – velho trapeiro da eternidade, – levou

consigo para o infinito depósito das coisas inúteis. Tudo lhe perdoava o ex-poeta, menos o

esquecimento de um poema em que ele metrificara a vida de Fúrio Camilo, poema que ainda então

lia com sincero entusiasmo. Como lembrança desta obra da juventude, chamou ele ao afilhado

Camilo, e com esse nome o batizou o padre Maciel, a grande aprazimento da família e seus amigos.

– Compadre, disse o comendador ao naturalista, se este pequeno vingar, hei de mandá-lo

para sua terra, a aprender medicina ou qualquer outra coisa em que se faça homem. No caso de lhe

achar jeito para andar com plantas e minerais, como o senhor, não se acanhe; dê-lhe o destino que

lhe parecer como se fôra seu pai, que o é, espiritualmente falando.

– Quem sabe se eu viverei nesse tempo? disse o naturalista.

– Oh! Há de viver! Protestou Seabra. Esse corpo não engana; a sua têmpera é de ferro. Não

o vejo eu andar todos os dias por esse matos e campos, indiferente a sóis e a chuvas, sem nunca ter

a mais leve dor de cabeça? Com metade dos seus trabalhos já eu estava defunto. Há de viver e

cuidar do meu rapaz, apenas ele tiver concluído cá os seus primeiros estudos.

A promessa de Seabra foi pontualmente cumprida. Camilo seguiu para Paris, logo depois de

alguns preparatórios, e ali o padrinho cuidou dele como se realmente fôra seu pai. O comendador

não poupava dinheiro para que nada faltasse ao filho; a mesada que lhe mandava podia servir para

duas ou três pessoas em iguais circunstâncias. Além da mesada, recebia ele por ocasião da Páscoa e

do Natal, amêndoas e festas que a mãe lhe mandava, e que lhe chegavam às mãos debaixo da forma

de alguns excelentes mil francos.

Até aqui o único ponto negro na existência de Camilo, era o padrinho, que o trazia peado,

com receio de que o rapaz viesse a perder-se nos precipícios da grande cidade. Quis, porém, a sai

boa estrela que o ex-poeta de 1810 fosse repousar no nada ao lado das suas produções extintas,

deixando na ciência alguns vestígios da sua passagem por ela. Camilo apressou-se ao escrever ao

pai uma carta cheia de reflexões filosóficas.

O período final dizia assim:

“Em suma, meu pai, se lhe parece que eu tenho o necessário juízo para concluir aqui os meus

estudos, e se tem confiança na boa inspiração que me há de dar a alma daquele que lá se foi deste

vale de lágrimas para gozar a infinita bem-aventurança, deixe-me cá ficar até que eu possa regressar

ao meu país, como um cidadão esclarecido e apto para o servir, como é do meu dever. Caso a sua

vontade seja contrária a isto que lhe peço, diga-o com franqueza, meu pai, porque então não me

demorarei um instante mais nesta terra, que já foi meia pátria para mim, e que hoje (hélas!) é

apenas uma terra de exílio.”

O bom velho não era homem que pudesse ver por entre as linhas desta lacrimosa epístola o

verdadeiro sentimento que a ditara. Chorou de alegria ao ler as palavras do filho, mostrou a carta a

todos os seus amigos, e apressou-se a responder ao rapaz que podia ficar em Paris todo o tempo

necessário para completar os seus estudos, e que, além da mesada que lhe dava, nunca recusaria

tudo quanto lhe fosse indispensável em circunstâncias imprevistas. Além disso, aprovava de

coração os sentimentos que ele manifestava em relação à sua pátria e à memória do padrinho.

Transmitia-lhe muitas recomendações do tio Jorge, do padre Maciel, do coronel Veiga, de todos os

parentes e amigos, e concluía deitando-lhe a benção.

A resposta paterna chegou às mãos de Camilo no meio de um almoço, que ele dava no Café

de Madri a dois ou três estróinas de primeira qualidade. Esperava aquilo mesmo, mas não resistiu ao

desejo de beber à saúde do pai, ato em que foi acompanhado pelos elegantes milhafres seus amigos.

Nesse mesmo dia planeou Camilo algumas circunstâncias imprevistas (para o comendador) e o

próximo correio trouxe para o Brasil uma extensa carta em que ele agradecia as boas expressões do

pai, dizia-lhe as suas saudades, confiava-lhe as suas esperanças, e pedia-lhe respeitosamente, em

post-scriptum, a remessa de uma pequena quantia de dinheiro.

Graças a estas facilidades atirou-se o nosso Camilo a uma vida solta e dispendiosa, não tanto,

porém, que lhe sacrificasse os estudos. A inteligência que possuia, e certo amor-próprio que não

perdera, muito o ajudaram neste lance; concluído o curso, foi examinado, aprovado e doutorado.

A notícia do acontecimento foi transmitida ao pai com o pedido de uma licença para ir ver

outras terras da Europa. Obteve a licença, e saiu de Paris para visitar a Itália, a Alemanha e a

Inglaterra. No fim de alguns meses estava outra vez na grande capital, e aí relatou o fio da sua

antiga existência, já livre então dos cuidados estranhos e aborrecidos. A escala todas dos prazeres

sensuais e frívolos foi percorrida por este esperançoso mancebo com uma sofreguidão que parecia

antes suicídio. Seus amigos eram numerosos, solícitos e constantes; alguns não duvidavam dar-lhe a

honra de o constituir seu credor. Entre as moças de Corinto era o seu nome verdadeiramente

popular; não poucas o tinham amado até o delírio. Não havia pateada célebre em que a chave dos

seus aposentos não figurasse, nem corrida, nem ceata, nem passeios em que não ocupasse um dos

primeiros lugares cet aimable brésilien.

Desejoso de o ver, escreveu-lhe o comendador pedindo que regressasse ao Brasil; mas o filho,

parisiense até à medula dos ossos, não compreendia que um homem pudesse sair do cérebro da

França para vir internar-se em Goiás. Respondeu com evasivas e deixou-se ficar. O velho fez vista

grossa a esta primeira desobediência. Tempos depois insistiu em chamá-lo; novas evasivas da parte

de Camilo. Irritou-se o pai e a terceira carta que lhe mandou foi já de amargas censuras. Camilo

caiu em si e dispôs-se com grande mágoa a regressar à pátria, não sem esperanças de voltar a acabar

os seus dias no Boulevard dos Italianos ou à porta do café Helder.

Um incidente, porém, demorou ainda desta vez o regresso do jovem médico. Ele, que até ali

vivera de amores fáceis e paixões de uma hora, veio a enamorar-se repentinamente de uma linda

princesa russa. Não se assustem; a princesa russa de quem falo, afirmavam algumas pessoas que era

filha da rua do Bac e trabalhara numa casa de modas, até à revolução de 1848. No meio da

revolução apaixonou-se por um major polaco, que a levou para Varsóvia, donde acaba de chegar

transformada em princesa, com um nome acabado em ine ou em off, não sei bem. Vivia

misteriosamente, zombando de todos os seus adoradores, exceto de Camilo, dizia ela, por quem

sentia que era capaz de aposentar as suas roupas de viúva. Tão depressa, porém, soltava estas

expressões irrefletidas, como logo protestava com os olhos no céu.

– Oh! não! Nunca, meu caro Alexis, nunca desonrarei a tua memória unindo-me a outro.

Isto eram punhais que dilaceravam o coração de Camilo. O jovem médico jurava por todos os

santos do calendário latino e grego que nunca amara a ninguém como à formosa princesa. A bárbara

senhora parecia às vezes disposta a crer nos protestos de Camilo; outras vezes porém abanava a

cabeça e pedia perdão à sombra do venerado príncipe Alexis. Neste meio tempo chegou uma carta

decisiva do comendador. O velho goiano intimava pela última vez ao filho que voltasse, sob pena

de lhe suspender todos os recursos e trancar-lhe a porta.

Não era possível tergiversar mais. Imaginou ainda uma grave moléstia mas a idéia de que o

pai podia acreditar nela e suspender-lhe realmente os meios, aluiu de todo este projeto. Camilo sem

ânimo teve de ir confessar a sua posição à bela princesa; receava além disso que ela, por um rasgo

de generosidade, – natural em que se ama, – quisesse dividir com ele as suas terras de Novgorod.

Aceitá-las seria humilhação, recusá-las poderia ser ofensa. Camilo preferiu sair de paris deixando à

princesa uma carta em que lhe contava singelamente os acontecimentos e prometia voltar algum

dia.

Tais eram as calamidades com que o destino quisera abater o ânimo de Camilo. Todas elas

repassou na memória o infeliz viajante, até que ouviu bater oito horas da noite. Saiu um pouco para

tomar ar, e ainda mais se lhe acenderam as saudades de paris. Tudo lhe parecia lúgubre, acanhado,

mesquinho. Olhou cm desdém olímpico para todas as lojas da rua do Ouvidor, que lhe pareceu

apenas um beco muito comprido e muito iluminado. Achava os homens deselegantes, as senhoras

desgraciosas. Lembrou-se, porém, que Santa Luzia, sua cidade natal, era ainda menos parisiense

que o Rio de Janeiro, e então, abatido com esta importuna idéias, correu para o hotel e deitou-se a

dormir.

No dia seguinte, logo depois de almoço, foi a casa do correspondente de seu pai. Declarou-lhe

que tencionava seguir dentro de quatro ou cinco dias para Goiás, e recebeu dele os necessários

recursos, segundo as ordens já dadas pelo comendador. O correspondente acrescentou que estava

incumbido de lhe facilitar tudo o que quisesse no caso de desejar passar algumas semanas na corte.

– Não, respondeu Camilo; nada me prende à corte e estou ansioso por me ver a caminho.

– Imagino as saudades que há de ter. Há quantos anos?

– Oito.

– Oito! Já é uma ausência longa.

Camilo ia-se dispondo a sair, quando viu entrar um sujeito alto, magro, com alguma barba em

baixo do queixo e bigode, vestido com um paletó de brim pardo e trazendo na cabeça um chapéu de

Chile. O sujeito olhou para Camilo, estacou, recuou um passo, e depois de uma razoável hesitação,

exclamou:

– Não me engano! é o Sr. Camilo!

– Camilo Seabra, com efeito, respondeu o filho do comendador, lançando um olhar

interrogativo ao dono da casa.

– Este senhor, disse o correspondente, é o Sr. Soares, filho do negociante do mesmo nome,

da cidade de Santa Luzia.

– Quê! é o Leonardo que eu deixei apenas com um buço…

– Em carne e osso interrompeu Soares; é o mesmo Leandro que lhe aparece agora todo

barbado, como o senhor, que também está com bigodes bonitos!

– Pois não o conhecia…

– Conheci-o eu apenas o vi, apesar de o achar muito mudado do que era. Está agora um

moço apurado. Eu é que estou velho. Já cá estão vinte e seis… Não se ria: estou velho. Quando

chegou?

– Ontem.

– E quando segue viagem para Goiás?

– Espero o primeiro vapor de Santos.

– Nem de propósito! Iremos juntos.

– Como está seu pai? Como vai toda aquela gente? O padre Maciel? O Veiga? Dê-me

notícias de todos e de tudo.

– Temos tempo para conversar à vontade. Por agora só lhe digo que todos vão bem. O

vigário é que esteve, dois meses doente de uma febre maligna e ninguém pensava que arribasse;

mas arribou. Deus nos livre que o homem adoeça, agora que estamos com o Espírito Santo à porta.

– Ainda fazem aquelas festas?

– Pois então! O imperador, este ano, é o coronel Veiga; e diz que quer fazer as coisas com

todo o brilho. Já prometeu que daria um baile. Mas nós temos tempo de conversar, ou aqui ou em

caminho. Onde está morando?

Camilo indicou o hotel em que se achava, e despediu-se do comprovinciano, satisfeito de

haver encontrado um companheiro que de algum modo lhe diminuísse os tédios de tão longa

viagem. Soares chegou à porta e acompanhou com os olhos o filho do comendador até perdê-lo de

vista.

– Veja o senhor o que é andar por estas terras estrangeiras, disse ele ao correspondente, que

também chegava à porta. Que mudança fez aquele rapaz, que era pouco mais ou menos como eu.

 

CAPÍTULO II

PARA GOIÁS

 

Daí a dias seguiam ambos para Santos, de lá para São Paulo e tomavam a estrada de Goiás.

Soares, à medida que ia reavendo a antiga amizade com o filho do comendador, contava-lhe

as memórias da sua vida, durante os oito anos de separação, e, à falta de coisa melhor, era isto o que

entretinha o médico nas ocasiões e lugares em que a natureza lhe não oferecia algum espetáculo dos

seus. Ao cabo de umas quantas léguas de marcha estava Camilo informado das rixas eleitorais de

Soares, das suas aventuras na caça, das suas proezas amorosas, e de muitas coisas mais, umas

graves, outras fúteis, que Soares narrava com igual entusiasmo e interesse.

Camilo não era espírito observador; mas a alma de Soares andava-lhe tão patente nas mãos,

que era impossível deixar de a ver e examinar. Não lhe pareceu mau rapaz, notou-lhe, porém, certa

fanfarronice, em todo o gênero de coisas, na política, na caça, no jogo, e até nos amores. Neste

último capítulo havia um parágrafo sério; era o que dizia respeito a uma moça, que ele amava

loucamente, de tal modo que prometia aniquilar a quem quer que ousasse levantar olhos para ela.

– É o que lhe digo, Camilo, confessava o filho do comerciante, se alguém tiver o

atrevimento de pretender essa moça pode contar que há no mundo mais dois desgraçados, ele e eu.

Não há de acontecer assim felizmente lá todos me conhecem; sabem que não cochilo para executar

o que prometo. Há poucos meses o major Valente perdeu a eleição só porque teve o atrevimento de

dizer que ia arranjar a demissão do juiz municipal. Não arranjou a demissão, e por castigo tomou

taboca; saiu na lista dos suplentes. Quem lhe deu o golpe fui eu. A coisa foi…

– Mas por que não se casa com essa moça? perguntou Camilo, desviando cautelosamente a

narração da última vitória eleitoral de Soares.

– Não me caso porque… tem muita curiosidade de o saber?

– Curiosidade… de amigo e nada mais.

– Não me caso porque ela não quer.

Camilo estacou o cavalo.

– Não quer? disse ele espantado. Então por que motivo pretende impedir que ela…

– Isso é uma história muito comprida. A Isabel…

– Isabel?… interrompeu Camilo. Ora, espere, será a filha do Dr. Matos, que foi juiz de

direito há dez anos?

– Essa mesma.

– Deve estar uma moça?

– Tem seus vinte anos bem contados.

– Lembra-me que era bonitinha aos doze

– Oh! mudou muito… para melhor! Ninguém a vê que não fique logo com a cabeça voltada.

Tem rejeitado já uns poucos de casamentos. O último noivo recusado fui eu. A causa por que se me

recusou foi ela mesma que me veio dizer.

– E que causa era?

– “Olha, Sr. Soares, disse-me ela. O senhor merece bem que uma moça o aceite por marido;

eu era capaz disso, mas não o faço porque nunca seríamos felizes.”

– Que mais?

– Mais nada. Respondeu-me apenas isto que lhe acabo de contar.

– Nunca mais se falaram?

– Pelo contrário, falamo-nos muitas vezes. Não mudou comigo; trata-me como dantes. A

não serem aquelas palavras que ela me disse, e que ainda me doem cá dentro, eu podia ter

esperanças. Vejo, porém, que seriam inúteis; ela não gosta de mim.

– Quer que lhe diga uma coisa com franqueza?

– Diga.

– Parece-me um grande egoísta.

– Pode ser; mas sou assim. Tenho ciúmes de tudo, até do ar que ela respira. Eu, se a visse

gostar de outro, e não pudesse impedir o casamento, mudava de terra. O que me vale é a convicção

que tenho de que ela não há de gostar nunca de outro, e assim pensam todos os mais.

– Não admira que não saiba amar, reflexionou Camilo, pondo os olhos no horizonte como

se estivesse ali a imagem da formosa súdita do czar. Nem todas receberam do céu esse dom, que é o

verdadeiro distintivo dos espíritos seletos. Algumas há, porém que sabem dar a vida e a alma a um

ente querido, que lhe enchem o coração de profundos afetos, e deste modo fazem jus a uma

perpétua adoração. São raras, bem sei, as mulheres desta casta; mas existem…

Camilo terminou esta homenagem à dama dos seus pensamentos abrindo as asas a um suspiro

que se não chegou ao seu destino, não foi por culpa do autor. O companheiro não compreendeu a

intenção do discurso, insistiu em dizer que a formosa goiana estava longe de gostar de ninguém, e

ele ainda mais longe de lho consentir.

O assunto agradava aos dois comprovincianos; falaram dele longamente até o aproximar da

tarde. Pouco depois chegaram a um pouso, onde deviam pernoitar.

Tirada a carga dos animais, cuidaram os criados primeiramente do café, e, depois do jantar.

Nessas ocasiões ainda mais pungiram ao nosso herói as saudades de Paris. Que diferença entre os

seus jantares dos restaurants dos boulevards e aquela refeição ligeira e tosca, num miserável

pouso de estrada, sem os acepipes da cozinha francesa, sem a leitura do Fígaro ou da Gazette des

Tribunaux!

Camilo suspirava consigo mesmo; tornava-se então ainda menos comunicativo. Não se perdia

nada porque o seu companheiro falava por dois.

Acabada a refeição, acendeu Camilo um charuto e Soares um cigarro de palha. Era já noite. A

fogueira do jantar alumiava um pequeno espaço em roda; mas nem era precisa, porque a lua

começava a surgir de trás de um morro, pálida e luminosa, brincando nas folhas do arvoredo e nas

águas tranqüilas do rio que serpeava ali ao pé.

Um dos tropeiros sacou a viola e começou a gargantear uma cantiga, que a qualquer outro

encantaria pela rude singeleza dos versos e da toada, mas que ao filho do comendador apenas fez

lembrar com tristeza as volatas da Ópera. Lembrou-lhe mais; lembrou-lhe uma noite em que a bel

amoscovita, molemente sentada num camarote dos Italianos, deixava de ouvir as ternuras do tenor,

para contemplá-lo de longe, cheirando um raminho de violetas.

Soares atirou à rede e adormeceu.

O tropeiro cessou de cantar, e dentro de pouco tempo tudo era silêncio no pouso.

Camilo ficou sozinho diante da noite, que estava realmente formosa e solene. Não faltava ao

jovem goiano a inteligência do belo; e a quase novidade daquele espetáculo, que uma longa

ausência lhe fizera esquecer, não deixava de o impressionar imensamente.

De quando em quando chegavam aos seus ouvidos urros longínquos, de alguma fera que

vagueava na solidão. Outras vezes eram aves noturnas, que soltavam ao perto os seus pios

tristonhos. Os grilos, e também as rãs e os sapos formavam o coro daquela ópera do sertão, que o

nosso herói admirava decerto, mas à qual preferia indubitavelmente a ópera cômica.

Assim esteve longo tempo, cerca de duas horas, deixando vagar o seu espírito ao sabor das

saudades, e levantando e desfazendo mil castelos no ar. De repente foi chamado a si pela voz de

Soares, que parecia vítima de um pesadelo. Afiou o ouvido e escutou estas palavras soltas e

abafadas que o seu companheiro murmurava:

– Isabel… querida Isabel… Que é isso?… Ah! meu Deus! Acudam!

As últimas sílabas eram já mais aflitas que as primeiras. Camilo correu ao companheiro e

fortemente o sacudiu. Soares acordou espantado, sentou-se, olhou em roda de si e murmurou:

– Que é?

– Um pesadelo.

– Sim, foi um pesadelo. Ainda bem! Que horas são?

– Ainda é noite.

– Já está levantado?

– Agora é que me vou deitar. Durmamos que é tempo.

– Amanhã lhe contarei o sonho.

No dia seguinte, efetivamente, logo depois das primeiras vinte braças de marcha, referiu

Soares o terrível sonho de véspera.

– Estava eu ao pé de um rio, disse ele, com a espingarda na mão, espiando as capivaras.

Olho casualmente para a ribanceira que ficava muito acima, do lado oposto, e vejo uma moça

montada num cavalo preto, e com os cabelos, que também eram pretos, caídos sobre os ombros…

– Era tudo uma escuridão, interrompeu Camilo.

– Espere; admirei-me de ver ali, e por aquele modo, uma moça que me parecia franzina e

delicada. Quem pensava o senhor que era?

– A Isabel.

– A Isabel. Corri pela margem adiante, trepei acima de uma pedra fronteira ao lugar onde

ela estava, e perguntei-lhe o que fazia ali. Ela esteve algum tempo calada. Depois, apontando para o

fundo do grotão disse:

– “O meu chapéu caiu lá embaixo.

– Ah!

– O senhor ama-me? disse ela passados alguns minutos.

– Mais que a vida.

– Fará o que eu lhe pedir?

– Tudo.

– Bem, vá buscar o meu chapéu.”

Olhei para baixo. Era um imenso grotão em cujo fundo fervia e roncava uma água barrenta e

grossa. O chapéu, em vez de ir com a corrente por ali abaixo até perder-se de todo, ficara espetado

na ponta de uma rocha, e lá do fundo parecia convidar-me a descer. Mas era impossível. Olhei para

todos os lados, a ver se achava algum recurso. Nenhum havia…

– Veja o que é a imaginação escaldada! observou Camilo.

– Já eu procurava algumas palavras com que dissuadisse Isabel da terrível idéias, quando

senti pousar-me uma mão no ombro. Voltei-me; era um homem; era o senhor.

– Eu?

– É verdade. O senhor olhou para mim com um ar de desprezo, sorriu para ela e depois

olhou para o abismo. Repentinamente, sem que eu possa dizer como, estava o senhor em baixo e

estendia a mão para tirar o chapelinho fatal.

– Ah!

– A água, porém, engrossando subitamente, ameaçava submergi-lo. Então Isabel, soltando

um grito de angústia, esporeou o cavalo e atirou-se pela ribanceira abaixo. Gritei… chamei por

socorro;

– Tudo foi inútil. Já a água os enrolava em suas dobras… quando fui acordado pelo senhor.

Leandro Soares concluiu esta narração do seu pesadelo, parecendo ainda assustado do que lhe

acontecerá… imaginariamente. Convém dizer que ele acreditava nos sonhos.

– Veja o que é uma digestão mal feita! exclamou Camilo quando o comprovinciano

terminou a narração. Que porção de tolices! O chapéu, a ribanceira, o cavalo, e mais que tudo a

minha presença nesse melodrama fantástico, tudo isso é obra de quem digeriu mal o jantar. Em

Paris há teatros que representam pesadelos assim, – piores do que o seu porque são mais compridos.

Mas o que vejo também é que essa moça não o deixa nem dormindo.

– Nem dormindo!

Soares disse estas duas palavras quase como um eco, sem consciência. Desde que concluíra a

narração, e logo depois das primeiras palavras de Camilo, entrara a fazer consigo uma série de

reflexões que não chegaram ao conhecimento do autor desta narrativa. O mais que lhes posso dizer

é que não eram alegres, porque a fonte lhe descaiu, enrugou-se-lhe a testa, e ele, cravando os olhos

nas orelhas do animal, recolheu-se a um inviolável silêncio.

A viagem, daquele dia em diante, foi menos suportável para Camilo de que até ali. Além de

uma leve melancolia que se apoderara do companheiro, ia-se-lhe tornando enfadonho aquele andar

léguas e léguas que pareciam não acabar mais. Afinal voltou Soares à sua habitual verbosidade, mas

já então nada podia vencer o tédio mortal que se apoderara do mísero Camilo.

Quando porém avistou a cidade, perto da qual estava a fazenda, onde vivera as primeiras

auroras da sua mocidade, Camilo sentiu abalar-se-lhe fortemente o coração. Um sentimento sério o

dominava. Por algum tempo, ao menos, Paris com seus esplendores cedia o lugar à pequena e

honesta pátria dos Seabras.

 

CAPÍTULO III

O ENCONTRO

Foi um verdadeiro dia de festa aquele em que o comendador cingiu ao peito o filho que oito

anos antes mandara a terras estranhas. Não pode reter as lágrimas o bom velho, – não pode, que elas

vinham de um coração ainda viçoso de afetos e exuberante de ternura. Não menos intensa e sincera

foi a alegria de Camilo.

Beijou repetidamente as mãos e a fronte do pai, abraçou os parentes, os amigos de outro

tempo, e durante alguns dias, – não muitos, – parecia completamente curado dos seus desejos de

regressar à Europa.

Na cidade e seus arredores não se falava em outra coisa. O assunto, não principal mas

exclusivo das palestras e comentários era o filho do comendador. Ninguém se fartava de o elogiar.

Admiravam-lhe as maneiras e a elegância. A mesma superioridade com que ele falava a todos,

achava entusiastas sinceros. Durante muitos dias foi totalmente impossível que o rapaz pensasse em

outra coisa que não fosse contar as suas viagens aos amáveis conterrâneos. Mas pagavam-lhe a

maçada, porque a menor coisa que ele dissesse tinha aos olhos dos outros uma graça indefinível. O

padre Maciel, que o batizara vinte e seis anos antes, e que o via já homem completo era o primeiro

pregoeiro da sua transformação.

– Pode gabar-se, Sr. comendador, dizia ele ao pai de Camilo, pode gabar-se de que o céu

lhe deu um rapaz de truz! Santa Luzia vai ter um médico de primeira ordem, se me não engana o

afeto que tenho a esse que era ainda ontem um pirralho. E não só médico, mas até bom filósofo; é

verdade, parece-me bom filósofo. Sondei-o ontem nesse particular, e não lhe achei ponto fraco ou

duvidoso.

O tio Jorge andava a perguntar a todos o que pensavam do sobrinho Camilo. O tenentecoronel

Veiga agradecia à providência à chegada do Dr. Camilo nas proximidades do Espírito

Santo.

– Sem ele, o meu baile seria incompleto.

O Dr. Matos não foi o último que visitou o filho do comendador. Era um velho alto e bem

feito, ainda que um tanto quebrado pelos anos.

– Venha, doutor, disse o velho Seabra apenas o viu assomar à porta; venha ver o meu

homem.

– Homem, com efeito, respondeu Matos contemplando o rapaz. Está mais homem do que

eu supunha. Também já lá vão oito anos! Venha de lá esse abraço!

O moço abriu os braços ao velho. Depois, como era costume fazer a quantos o iam ver,

contou-lhe alguma coisa das suas viagens e estudos. É perfeitamente inútil dizer que o nosso herói

omitiu sempre tudo quanto pudesse abalar o bom conceito em que estava no ânimo de todos. A darlhe

crédito, vivera quase como um anacoreta; e ninguém ousava pensar ao contrário.

Tudo eram pois alegrias na boa cidade e seus arredores; e o jovem médico, lisonjeado com a

inesperada recepção que teve, continuou a não pensar muito em Paris. Mas o tempo corre e as

nossas sensações com ele se modificam. No fim de quinze dias tinha Camilo esgotado a novidade

das suas impressões; a fazenda começou a mudar de aspecto; os campos ficaram monótonos, as

árvores monótonas, os rios monótonos, a cidade monótona, ele próprio monótono. Invadiu-o então

uma coisa a que podemos chamar – nostalgia do exílio.

– Não, dizia ele consigo, não posso ficar aqui mais três meses. Paris ou o cemitério, tal é o

dilema que se me oferece. Daqui a três meses, estarei morto ou em caminho da Europa.

O aborrecimento de Camilo não escapou aos olhos do pai, que quase vivia a olhar para ele.

– Tem razão, pensava o comendador, Quem viveu por essas terras que dizem ser tão

bonitas e animadas, não pode estar aqui muito alegre. É preciso dar-lhe alguma ocupação… a

política, por exemplo.

– Política! exclamou Camilo, quando o pai lhe falou nesse assunto. De que me serve a

política, meu pai?

– De muito. Serás primeiro deputado provincial; podes ir depois para a câmara no Rio de

Janeiro. Um dia interpelas o ministério e se ele cair, podes subir ao governo. Nunca tiveste ambição

de ser ministro?

– Nunca.

– É pena!

– Por que?

– Porque é bom ser ministro.

– Governar os homens, não é? disse Camilo rindo; é um sexo ingovernável; prefiro o outro.

Seabra riu-se do repente, mas não perdeu a esperança de convencer o herdeiro.

Havia já vinte dias que o médico estava em casa do pai, quando se lembrou da história que lhe

contara Soares e do sonho que ele tivera no pouso. A primeira vez que foi à cidade e esteve com o

filho do negociante, perguntou-lhe:

– Diga-me como vai a sua Isabel, que ainda a não vi?

Soares olhou para ele com sobrolho carregado e levantou os ombros resmungando um seco:

– Não sei.

Camilo não insistiu.

– A moléstia ainda está no período agudo, disse ele consigo.

Teve porém curiosidade de ver a formosa Isabelinha, que tão por terra deitara aquele verboso

cabo eleitoral. A todas as moças da localidade, em dez léguas em redor, havia já falado o jovem

médico. Isabel era a única esquiva até então. Esquiva não digo bem. Camilo fôra uma vez à fazenda

do Dr. Matos; mas a filha estava doente. Pelo menos foi isso o que lhe disseram.

– Descanse, dizia-lhe um vizinho a quem ele mostrara impaciência de conhecer a amada de

Leandro Soares; há de vê-la no baile do coronel veiga, ou na festa do Espírito Santo, ou em outra

qualquer ocasião.

A beleza da moça, que ele não julgava pudesse ser superior, nem sequer igual, à da viúva do

príncipe Alexis, a paixão incurável de Soares e o tal ou qual mistério com que se falava de Isabel,

tudo isso excitou ao último ponto a curiosidade do filho do comendador.

No domingo próximo, oito dias antes do Espírito Santo, saiu Camilo da fazenda para ir à

missa na igreja da cidade, como já fizera nos domingos anteriores. O cavalo ia a passo lento, a

compasso com o pensamento do cavaleiro, que se espreguiçava pelo campo fora em busca das

sensações que já não tinha e que ansiava ter de novo.

Mil singulares idéias atravessavam o cérebro de Camilo. Ora, almejava alar-se com cavalo e

tudo, os ares e ir cair defronte do Palais-Royal, ou em outro qualquer ponto da capital do mundo.

Logo depois fazia a si mesmo a descrição de um cataclismo tal, que ele viesse a achar-se almoçando

no Café Tortoni, dois minutos depois de chegar ao altar o padre Maciel.

De repente, ao quebrar uma volta da estrada, descobriu ao longe duas senhoras a cavalo

acompanhadas por um pajem. Picou de esporas e dentro de pouco tempo estava junto dos três

cavaleiros. Uma das senhoras voltou a cabeça, sorriu e parou. Camilo aproximou-se, com a cabeça

descoberta, e estendeu-lhe a mão, que ela apertou.

A senhora a quem cumprimentara era a esposa do tenente-coronel Veiga. Representava ter

quarenta e cinco anos, mas estava assaz conservada. A outra senhora, sentindo o movimento da

companheira, fez parar também o cavalo e voltou igualmente a cabeça. Camilo não olhava então

para ela. Estava ocupado em ouvir D. Gertrudes, que lhe dava notícias do tenente-coronel.

– Agora só pensa na festa, dizia ela; já deve estar na igreja. Vai à missa, não?

– Vou.

– Vamos juntos.

Trocadas estas palavras, que foram rápidas, Camilo procurou com os olhos a outra cavaleira.

Ela porém ia já alguns passos adiante. O médico colocou-se ao lado de D. Gertrudes, e a comitiva

continuou a andar. Iam assim conversando havia já uns dez minutos, quando o cavalo da senhora

que ia adiante estacou.

– Que é, Isabel? perguntou D. Gertrudes.

– Isabel! exclamou Camilo, sem dar atenção ao incidente que provocara a pergunta da

esposa do coronel.

A moça voltou a cabeça e levantou os ombros respondendo secamente:

– Não sei.

A causa era um rumor que o cavalo sentira por trás de uma espessa moita de taquaras que

ficava à esquerda do caminho. Antes porém que o pajem ou Camilo fosse examinar a causa da

relutância do animal, a moça fez um esforço supremo, e chicoteando vigorosamente o cavalo,

conseguiu que este vencesse o terror, e deitasse a correr a galope adiante dos companheiros.

– Isabel! disse Camilo a D. Gertrudes. Aquela moça será a filha do Dr. Matos?

– É verdade. Não a conhecia?

– Há oito anos que a não vejo. Está uma flor! Já me não admira que se fale aqui tanto na

sua beleza. Disseram-me que estava doente…

– Esteve; mas as suas doenças são coisas de pequena monta. São nervos; assim se diz, creio

eu, quando se não sabe do que uma pessoa padece…

Isabel parara ao longe, e voltada para a esquerda da estrada, parecia admirar o espetáculo da

natureza. Daí a alguns minutos estavam perto dela os seus companheiros. A moça ia prosseguir a

marcha, quando D. Gertrudes lhe disse:

– Isabel!

A moça voltou o rosto. D. Gertrudes aproximou-se dela.

– Não te lembras do Dr. Camilo Seabra?

– Talvez não se lembre, disse Camilo. Tinha doze anos quando eu saí daqui, e já lá são

oito!

– Lembro-me, respondeu Isabel curvando levemente a cabeça, mas sem olhar para o

médico.

E chicoteando de mansinho o cavalo, seguiu para diante. Por mais singular que fosse aquela

maneira de reatar conhecimento antigo, o que mais impressionou então o filho do comendador foi a

beleza de Isabel, que lhe pareceu estar na altura da reputação.

Tanto quanto se podia julgar à primeira vista, a esbelta cavaleira deveria ser mais alta que

baixa. Era morena, – mas de um moreno acetinado e macio, com uns delicadíssimos longes cor-derosa,

– o que seria efeito da agitação, visto que afirmavam ser extremamente pálida. Os olhos, – não

lhes pode Camilo ver a cor, mas sentiu-lhes a luz que valia mais talvez, apesar de o não terem

fitado, e compreendeu logo que com olhos tais a formosa goiana houvesse fascinado o mísero

Soares.

Não averiguou, nem pode, as restantes feições da moça; mas o que pode contemplar à

vontade, o que já vinha admirando de longe, era a elegância nativa do busto e o gracioso desgarro

com que ela montava. Vira muitas amazonas elegantes e destras. Aquela porém tinha alguma coisa

em que se avantajava às outras; era talvez o desalinho do gesto, talvez a espontaneidade dos

movimento, outra coisa talvez, ou todas essas juntas que davam à interessante goiana incontestável

supremacia.

Isabel parava de quando em quando o cavalo e dirigia a palavra à esposa do coronel, a

respeito de qualquer acidente, – de um efeito de luz, de um pássaro que passava, de um som que se

ouvia, – mas em nenhuma ocasião encarava ou sequer olhava de esguelha o filho do comendador.

Absorvido na contemplação da moça, Camilo deixou cair na conversa, e havia já alguns minutos

que ele e D. Gertrudes iam cavalgando, sem dizer uma palavra, ao lado um do outro. Foram

interrompidos em sua marcha silenciosa por um cavaleiro, que vinha atrás da comitiva a trote largo.

Era Soares.

O filho do negociante vinha bem diferente do que até ali andava. Cumprimentou-os sorrindo

jovial como estivera nos primeiros dias de viagem do médico. Não era porém difícil conhecer que a

alegra de Soares era um artifício. O pobre namorado fechava o rosto de quando em quando, ou fazia

um gesto de desespero que felizmente escapava aos outros. Ele receava o triunfo de um homem que

física e intelectualmente lhe era superior; que, além disso, gozava naquela ocasião a grande

vantagem de dominar a atenção pública, que era o uso da aldeia, o acontecimento do dia, o homem

da situação. Tudo conspirava para derrubar a última esperança de Soares, que era a esperança de ver

morrer a moça isenta de todo o vínculo conjugal. O infeliz namorado tinha o sestro, aliás comum,

de querer ver quebrada ou inútil a taça que ele não podia levar aos lábios.

Cresceu porém seu receio quando, estando escondido no taquaral de que falei acima, para ver

passar Isabel, como costumava fazer muitas vezes, descobriu a pessoa de Camilo na comitiva. Não

pode reter uma exclamação de surpresa, e chegou a dar um passo na direção da estrada. Deteve-se a

tempo. Os cavaleiros, como vimos, passaram adiante, deixando o cioso pretendente a jurar aos céus

e à terra que tomaria desforra do seu atrevido rival, se o fosse.

Não era rival, bem sabemos; o coração de Camilo guardava ainda fresca a memória de

Artemisa moscovita, cujas lágrimas, apesar da distância, o rapaz sentia que eram ardentes e

aflitivas. Mas quem poderia convencer a Leandro Soares que o elegante moço da Europa, como

lhe chamavam não ficaria enamorado da esquiva goiana?

Isabel, entretanto, apenas viu o infeliz pretendente, deteve o cavalo e estendeu-lhe

afetuosamente a mão. Um adorável sorriso acompanhou este movimento. Não era bastante para

dissipar as dúvidas do pobre moço. Diversa, foi porém a impressão de Camilo.

– Ama-o, ou é uma grande velhaca, pensou ele.

Casualmente, – e pela primeira vez, – olhava Isabel para o filho do comendador. Perspicácia

ou adivinhação, leu-lhe no rosto esse pensamento oculto; franziu levemente a testa com uma

expressão tão viva de estranheza, que o médico ficou perplexo e não pode deixar de acrescentar, já

então com os lábios, à meia voz, falando para si:

– Ou fala com o diabo.

– Talvez, murmurou a moça com os olhos fitos no chão.

Isto foi dito assim, sem que os outros dois percebessem. Camilo não podia desviar os olhos da

formosa Isabel, meio espantado, meio curioso, depois da palavra murmurada por ela em tão

singulares condições. Soares olhava para Camilo com a mesma ternura, com que um gavião espreita

uma pomba. Isabel brincava com o chicotinho. D. Gertrudes, que temia perder a missa do padre

Maciel e receber um reparo amigável do marido, deu voz de marcha, e a comitiva seguiu

imediatamente.

 

CAPÍTULO IV

A FESTA

No sábado seguinte a cidade revestira desusado aspecto. De toda a parte correra uma chusma

de povo que ia assistir à festa anual do Espírito Santo.

Vão rareando os lugares em que de todo se não apagou o gosto dessas festas clássicas, resto

de outras eras, que os escritores do século futuro hão de estudar com curiosidade, para pintar aos

seus conterrâneos um Brasil que eles já não hão de conhecer. No tempo em que esta história se

passa uma das mais genuínas festas do espírito Santo era a da cidade de Santa Luzia.

O tenente-coronel Veiga, que era então o imperador do divino, estava em uma casa que

possuía na cidade. Na noite de sábado foi ali ter o bando dos pastores, composto de homens e

mulheres com o seu pitoresco vestuário, e acompanhado pelo clássico velho, que era um sujeito de

calção e meia, sapato raso, casaca esguia, colete comprido e grande bengala na mão.

Camilo estava em casa do coronel, quando ali apareceu o bando dos pastores, com alguns

músicos à frente, e muita gente atrás. Formaram logo, ali mesmo na rua, um círculo; um pastor e

uma pastora iniciaram a dança clássica. Dançaram, cantaram e tocaram todos, à porta e na sala do

coronel que estava literalmente a lamber-se de gosto. É ponto duvidoso, e provavelmente nunca será

liquidado, se o tenente-coronel Veiga preferia naquela ocasião ser ministro de Estado a ser

imperador do Espírito Santo.

E todavia aquilo era apenas uma mostra da grandeza do tenente-coronel. O sol de domingo

devia alumiar maiores coisas. Parece que esta razão determinou o rei da luz a trazer nesse dia os

seus melhores raios. O céu nunca se mostrara mais limpidamente azul.

Algumas nuvens grossas, durante a noite, chegaram a emurchecer as esperanças dos festeiros;

felizmente sobre a madrugada soprara um vento rijo que varreu o céu e purificou a atmosfera.

A população correspondeu à solicitude da natureza. Logo cedo apareceu ela com os seus

vestidos domingueiros, – jovial, risonha, palreira, – nada menos que feliz.

O ar atroava com foguetes; os sinos convidavam alegremente o povo à cerimônia religiosa.

Camilo passara a noite na cidade em casa do padre Maciel, e foi acordado, mais cedo do que

supusera, com os repiques e foguetada e mais demonstrações da cidade alegre. Em casa do pai

continuara o moço seus hábitos de Paris, em que o comendador julgou não dever perturbá-lo.

Acordava, portanto às 11 horas da manhã, exceto aos domingos, em que ia à missa, para de todo em

todo não ofender os hábitos da terra.

– Que diabo é isto padre? gritou Camilo do quarto onde estava e no momento em que uma

girândola lhe abria definitivamente os olhos.

– Que há de ser? respondeu o padre Maciel, metendo a cabeça pela porta: é a festa.

Camilo não pode conciliar o sono, e viu-se obrigado a levantar-se. Almoçou com o padre,

contou duas anedotas, confessou ao hóspede que Paris era o ideal das cidades, e saiu para ir ter à

casa do imperador do divino. O padre saiu com ele. Em caminho viram de longe Leandro Soares.

– Não me dirá, padre, perguntou Camilo, por que razão a filha do Dr. Matos não atende

àquele pobre rapaz que gosta tanto dela?

Maciel concertou os óculos e expôs a seguinte reflexão:

– Você parece tolo.

– Não tanto, como lhe pareço, replicou o filho do comendador, porque mais de uma pessoa

tem feito a mesma pergunta.

– Assim é, na verdade, disse o padre; mas há coisas que outros dizem e a gente não repete.

A Isabelinha não gosta do Soares simplesmente porque não gosta.

– Não lhe parece que essa moça é um tanto esquisita?

– Não, disse o padre, parece-me uma grande finória.

– Ah! por quê?

– Suspeito que tem muita ambição; não aceita o amor de Soares, a ver se pilha algum

casamento que lhe abra a porta das grandezas políticas.

– Ora, disse Camilo, levantando os ombros.

– Não acredita?

– Não.

– Pode ser que me engane; mas creio que é isto mesmo. Aqui cada qual dá uma explicação

à isenção de Isabel; todas as explicações me parecem absurdas; a minha é a melhor.

Camilo fez algumas objeções à explicação do padre, e despediu-se dele para ir a casa do

tenente-coronel.

O festivo imperador estava literalmente fora de si. Era a primeira vez que exercia cargo

honorífico e timbrava em fazê-lo brilhantemente, e até melhor que os seus predecessores. Ao

natural desejo de ficar por baixo, acrescia o elemento da inveja política. Alguns adversários seus

diziam pela boca pequena que o brioso coronel não era capaz de dar conta da mão.

– Pois verão se sou capaz, foi o que ele disse ao ouvir de alguns amigos a malícia dos

adversários.

Quando Camilo entrou na sala, acabava o tenente-coronel de explicar umas ordens relativas

ao jantar que se devia seguir à festa, e ouvia algumas informações que lhe dava um irmão definidor

acerca de uma cerimônia da sacristia.

– Não ouso falar-lhe, coronel, disse o filho do comendador, quando o Veiga ficou só com

ele; não ouso interrompê-lo.

– Não interrompe, acudiu o imperador do divino; agora deve tudo ser acabado. O

comendador vem?

– Já cá deve estar.

– Já viu a igreja?

– Ainda não.

– Está muito bonita. Não é por me gabar; creio que a festa não desmerecerá das outras, e

até em algumas coisas há de ir melhor.

Era absolutamente impossível não concordar com esta opinião, quando aquele que a exprimia

fazia assim o seu próprio louvor. Camilo encareceu ainda mais o mérito da festa. O coronel ouvia-o

com um riso de satisfação íntima, e dispunha-se a provar que o seu jovem amigo ainda não

apreciava bem a situação, quando este desviou a conversa, perguntando:

– Ainda não veio o Dr. Matos?

– Já.

– Com a família?

– Sim, com a família.

Neste momento foram interrompidos pelo som de muitos foguetes e de uma música que se

aproximava.

– São eles! disse Veiga: vêm buscar-me. Há de dar-me licença.

O coronel estava até então de calça preta e rodaque de brim. Correu a preparar-se com o traje

e as insígnias do seu elevado cargo. Camilo chegou à janela para ver o cortejo. Não tardou que este

aparecesse composto de uma banda de música da irmandade do Espírito Santo e dos pastores da

véspera. Os irmãos vestiam as suas opas encarnadas, e vinham a passo grave, cercados do povo, que

enchia a rua e se aglomerava à porta do tenente-coronel para vê-lo sair.

Quando o cortejo parou em frente a casa do tenente-coronel cessou a música de tocar e todos

os olhos se voltaram curiosamente para as janelas. Mas o imperador estreante estava ainda por

completar a sua edição, e os curiosos tiveram de contentar-se com a pessoa do Dr. Camilo.

Entretanto quatro ou seis irmãos mais graduados destacaram-se do grupo e subiram as escadas do

tenente-coronel.

Minutos depois cumprimentava Camilo os ditos irmãos graduados, um dos quais, mais

graduado que os outros, não o era só no cargo, mas também, e sobretudo, no tamanho. E a estatura

do major Brás seria a coisa mais notável da sua pessoa, se lhe não pedisse meças a magreza do

próprio major. A opa do maior, apesar disto, ficava-lhe bem, porque nem ia até abaixo da curva da

perna como a dos outros, nem lhe ficava na cintura, como devera, no caso de ter sido feita pela

mesma medida. Era uma opa termo-média. Ficava-lhe entre a cintura e a curva, e foi feita assim de

propósito para conciliar os princípios da elegância com a estatura do major.

Todos os irmãos graduados estenderam a mão ao filho do comendador e perguntaram

ansiosamente pelo tenente-coronel.

– Não tarda; foi vestir-se, respondeu Camilo.

– A igreja está cheia, disse um dos irmãos graduados; só se espera por ele.

– É justo esperar, opinou o major Brás.

– Apoiado, disse o coro dos irmãos.

– Demais, continuou o imenso oficial, temos tempo; e não vamos para longe.

Os outros irmãos apoiaram com o gesto esta opinião do major, que, ato contínuo começou a

dizer a Camilo os mil trabalhos que a festa lhe dera, a ele e aos cavaleiros que o acompanharam

naquela ocasião, não menos que ao tenente-coronel.

– Como recompensa dos nossos débeis esforços (Camilo fez um sinal negativo a estas

palavras do major Brás), temos consciência de que a coisa não saíra de todo mal.

Ainda estas palavras não tinham bem saído dos lábios do digno oficial, quando assomou à

porta da sala o tenente-coronel em todo o esplendor da sua transformação.

Camilo perdera de todo as noções que tinha a respeito do traje e insígnias de um imperador do

Espírito Santo. Não foi pois sem grande pasmo que viu assomar à porta da sala a figura do tenentecoronel.

Além da calça preta, que já tinha no corpo quando ali chegou Camilo, o tenente-coronel

envergara uma casaca, que pela regularidade e elegância do corte podia rivalizar com as dos mais

apurados membros do cassino Fluminense. Até aí tudo bem. Ao peito rutilava uma vasta comenda

da Ordem da Rosa, que lhe não ficava mal. Mas o que excedeu a toda a expectação, o que pintou no

rosto do nosso Camilo a mais completa expressão de assombro, foi uma brilhante e vistosa coroa de

papelão forrado de papel dourado, que o tenente-coronel trazia na cabeça.

Camilo recuou um passo e cravou os olhos na insígnia imperial do tenente-coronel. Já lhe não

lembrava aquele acessório indispensável em ocasiões semelhantes, e tendo vivido oito anos no meio

de uma civilização diversa, não imaginava que ainda existissem costumes que ele julgava

enterrados.

O tenente-coronel apertou a mão a todos os amigos e declarou que estava pronto a

acompanhá-los.

– Não façamos esperar o povo, disse ele.

Imediatamente, desceram à rua. Houve no povo um movimento de curiosidade, quando viu

aparecer à porta a opa encarnada de um dos irmãos que haviam subido. Logo atrás apareceu outra

opa, e não tardou que as restantes opas aparecessem também, flanqueando o viçoso imperador. A

coroa dourada, apenas o sol lhe bateu de chapa, entrou a despedir faíscas quase inverossímeis. O

tenente-coronel olhou a um lado e outro, fez algumas inclinações leves de cabeça a uma ou outra

pessoa da multidão, e foi ocupar o seu lugar de honra no cortejo. A música rompeu logo uma

marcha, que foi executada pelo tenente-coronel, a irmandade e os pastores, na direção da igreja.

Apenas da igreja avistaram o cortejo, o sineiro que já estava à espreita, pôs em obra as lições

mais complicadas do seu ofício, enquanto uma girândola, entremeada de alguns foguetes soltos,

anunciava às nuvens do céu que o imperador do divino era chegado. Na igreja houve um rebuliço

geral apenas se anunciou que era chegado o imperador. Um mestre de cerimônias ativo e

desempenhado ia abrindo alas, com grande dificuldade, porque o povo, ansioso por ver a figura do

tenente-coronel, aglomerava-se desordenadamente desfazia a obra do mestre de cerimônias. Afinal

aconteceu o que sempre acontece nessas ocasiões; as alas foram-se abrindo por si mesmas, e ainda

que com algum custo, o tenente-coronel atravessou a multidão, precedido e acompanhado pela

irmandade, até chegar ao trono que se levantava ao lado do altar-mor. Subiu com firmeza os

degraus do trono, e sentou-se nele, tão orgulhoso como se governasse dali todos os impérios juntos

do mundo.

Quando Camilo chegou à igreja, já a festa havia começado. Achou um lugar sofrível, ou antes

inteiramente bom, porque ali podia dominar um grande grupo de senhoras, entre as quais descobriu

a formosa Isabel.

Camilo estava ansioso por falar outra vez com Isabel. O encontro na estrada e a singular

perspicácia de que a moça dera prova nessa ocasião, não lhe haviam saído da cabeça. A moça

pareceu não dar por ele, mas Camilo era tão versado em tratar com o belo sexo, que não lhe foi

difícil perceber que ela o tinha visto e intencionalmente não voltava os olhos para o lado dele. Esta

circunstância, ligada aos incidentes do domingo anterior, fez-lhe nascer no espírito a seguinte

pergunta:

– Mas que tem ela contra mim?

A festa prosseguiu sem novidade. Camilo não tirava os olhos de sua bela charada, nome que

já lhe dava, mas a charada parecia refratária a todo o sentimento de curiosidade. Uma vez porém,

quase no fim, encontraram-se os olhos de ambos. Pede a verdade que se diga que o rapaz

surpreendeu a moça a olhar para ele. Cumprimentou-a; foi correspondido; nada mais. Acabada a

festa foi a irmandade levar o tenente-coronel até a casa. No meio da lufa-lufa da saída, Camilo, que

estava embebido a olhar para Isabel, ouviu uma voz desconhecida que lhe dizia no ouvido:

– Veja o que faz!

Camilo voltou-se e deu com um homem baixinho e magro, de olhos miúdos e vivos, pobre

mas asseadamente trajado. Encararam-se alguns segundos sem dizer palavra. Camilo não conhecia

aquela cara e não se atrevia a pedir explicação das palavras que ouvira, conquanto ardesse por saber

o resto.

– Há um mistério, continuou o desconhecido. Quer descobri-lo?

Houve algum tempo de silêncio.

– O lugar não é próprio, disse Camilo; mas se tem alguma coisa que me dizer…

– Não; descubra o senhor mesmo.

E dizendo isto desapareceu no meio do povo o homem baixinho e magro, de olhos vivos e

miúdos. Camilo acotovelou umas dez ou doze pessoas, pisou uns quinze ou vinte calos, pediu

outras tantas vezes perdão da sua imprudência, até que se achou na rua sem ver nada que se

parecesse com o desconhecido.

– Um romance! disse ele; estou em pleno romance.

Nisto saíam da igreja Isabel, D. Gertrudes e o Dr. Matos. Camilo aproximou-se do grupo e

cumprimentou-os. Matos deu braço a D. Gertrudes; Camilo ofereceu timidamente o seu a Isabel. A

moça hesitou; mas não era possível recusar. Passou o braço no do jovem médico e o grupo dirigiuse

para a casa onde o tenente-coronel já estava e mais algumas pessoas importantes da localidade.

No meio do povo havia um homem que também se dirigia para a casa do coronel e que não tirava os

olhos de Camilo e de Isabel.

Esse homem mordia o lábio até fazer sangue.

Será preciso dizer que era Leandro Soares?

 

CAPÍTULO V

PAIXÃO

 

A distância da igreja à casa era pequena; e a conversa entre Isabel e Camilo não foi longa nem

seguida. E todavia, leitor, se alguma simpatia te merece a princesa moscovita, deves sinceramente

lastimá-la. A aurora de um novo sentimento começava a dourara as cumeadas do coração de

Camilo; ao subir as escadas, confessava o filho do comendador de si para si, que a interessante

patrícia tinha qualidade superiores às da bela princesa russa. Hora e meia depois, isto é, quase no

fim do jantar, o coração de Camilo confirmava plenamente esta descoberta do seu investigador

espírito.

A conversa, entretanto, não passou de coisas totalmente indiferentes; mas Isabel falava com

tanta doçura e graça, posto não alterasse nunca a sua habitual reserva; os olhos eram tão bonitos de

ver ao perto, e os cabelos também, e a boca igualmente, e as mãos do mesmo modo, que o nosso

ardente mancebo, só mudando de natureza, poderia resistir ao influxo de tantas graças juntas.

O jantar corre sem novidade apreciável. Reuniram-se à mesa do tenente-coronel todas as

notabilidades do lugar: o vigário, o juiz municipal, o negociante, o fazendeiro, reinando sempre de

uma ponta a outra da mesa a maior cordialidade e harmonia. O imperador do divino, já então

restituído ao seu vestuário comum fazia as honras da mesa com verdadeiro entusiasmo. A festa era

objetivo da geral conversa, entremeada, é verdade, de reflexões políticas, em que todos estavam de

acordo, porque eram do mesmo partido, homens e senhoras.

O major Brás tinha por costume fazer um ou dois brindes longos e eloqüentes em cada jantar

de certa ordem a que assistisse. A facilidade com que ele se exprimia, não tina rival em toda a

província. Além disso, como era dotado de descomunal estatura, dominava de tal modo o auditório,

que o simples levantar-se era já meio triunfo.

Não podia o major Brás deixar incólume o jantar do tenente-coronel; ia-se entrar na

sobremesa quando o eloqüente major pediu licença para dizer algumas palavras singelas e toscas.

Um murmúrio equivalente aos não-apoiados das câmaras, acolheu esta declaração do orador, e o

auditório preparou o ouvido para receber as pérolas que lhe iam cair da boca.

– O ilustre auditório que me escuta, disse ele, desculpará a minha ousadia; não vos fala o

talento, senhores, fala-vos o coração. Meu brinde é curto; para celebrar as virtudes e a capacidade

do ilustre tenente-coronel veiga não é preciso fazer um longo discurso. Seu nome diz tudo; a minha

voz nada adiantaria…

O auditório revelou por sinais que aplaudia sem restrições o primeiro membro desta última

frase, e com restrições o segundo; isto é, cumprimentou o tenente-coronel e o major; e o orador que,

para ser coerente com o que acabava de dizer, devia limitar-se a esvaziar o copo, prosseguiu da

seguinte maneira:

– O imenso acontecimento que acabamos de presenciar, senhores, creio que nunca se

apagará da vossa memória. Muitas festas do espírito Santo têm havido nesta cidade e em outras;

mas nunca o povo teve o júbilo de contemplar um esplendor, uma animação, um triunfo igual ao

que nos proporcionou o nosso ilustre correligionário e amigo, o tenente-coronel Veiga, honra da

classe a que pertence, e a glória do partido a que se filiou…

– E no qual pretendo morrer, completou o tenente-coronel.

– Nem outra coisa era de esperar de V. Exa., disse o orador mudando de voz para dar a

estas palavras um tom de parênteses.

Apesar da declaração feita no princípio, de que era inútil acrescentar nada aos méritos do

tenente-coronel, o intrépido orador falou cerca de vinte e cinco minutos com grande mágoa do

padre Maciel, que namorava de longe um fofo e trêmulo pudim de pão, e do juiz municipal que

estava ansioso por ir fumar. A peroração desse memorável discurso foi pouco mais ou menos assim:

– Eu falaria, portanto, aos meus deveres de amigo, de correligionário, de subordinado e de

admirador, se não levantasse a voz nesta ocasião, e não vos dissesse em linguagem tosca, sim,

(sinais de desaprovação), mas sincera, os sentimentos que me tumultuam dentro do peito, o

entusiasmo de que me sinto possuído, quando contemplo o venerando e ilustre tenente-coronel

Veiga, e se vos não convidasse a beber comigo à saúde de S. Exa.

O auditório acompanhou com entusiasmo o brinde do major, ao qual respondeu o tenentecoronel

com estas poucas, mas sentidas palavras:

– Os elogios que me acha de fazer o distinto major Brás, são verdadeiros favores de uma

alma grande e generosa; não os mereço, senhores; devolvo-os intatos ao ilustre orador que me

precedeu.

No meio da festa e da alegria que reinava, ninguém reparou nas atenções que Camilo prestava

à bela filha do Dr. Matos. Ninguém, digo mal; Leandro Soares, que fora convidado ao jantar, e

assistira a ele, não tirava os olhos do elegante rival e da sua formosa e esquiva dama.

Há de parecer milagre ao leitor a indiferença e até o ar alegre com que Soares via os ataques

do adversário. Não é milagre; Soares também interrogava o olhar de Isabel e lia nele a indiferença;

talvez o desdém, com que tratava o filho do comendador.

– Nem eu, nem ele, dizia consigo o pretendente.

Camilo estava apaixonado; no dia seguinte amanheceu pior; cada dia que passava aumentava

a chama que o consumia. Paris e a princesa, tudo havia desaparecido do coração e da memória do

rapaz. Um só ente, um lugar único mereciam agora as suas atenções: Isabel e Goiás.

A esquivança e os desdéns da moça não contribuíram pouco para esta transformação. Fazendo

de si próprio melhor idéia que o rival, Camilo dizia consigo:

– Se ela não me dá atenção, muito menos deve importar-se com o filho do Soares. Mas por

que razão se mostra comigo tão esquiva? Que motivo há para que eu seja derrotado como qualquer

pretendente vulgar.

Nessas ocasiões lembrava-se do desconhecido que lhe falara na igreja e das palavras que lhe

dissera.

– Algum mistério haverá, dizia ele; mas como descobri-lo?

Indagou das pessoas da cidade quem era o sujeito baixo, de olhos miúdos e vivis. Ninguém

lho soube dizer. Parecia incrível que não chegasse a descobrir naquelas paragens um homem que

naturalmente alguém devia conhecer; recobrou de esforços; ninguém sabia quem era o misterioso

sujeito.

Entretanto Camilo freqüentava a fazenda do Dr. Matos e ali ia jantar algumas vezes. Era

difícil falar a Isabel com a liberdade que permitem mais adiantados costumes; fazia entretanto o que

lhe podia para comunicar à bela moça os seus sentimentos. Isabel parecia cada vez mais estranha às

comunicações do rapaz. Suas maneiras não eram positivamente desdenhosas, mas frias; dissera-se

que ali dentro morava um coração de neve.

Ao amor desprezado, veio juntar-se o orgulho ofendido, o despeito e a vergonha, e tudo isto,

junto a uma epidemia que então reinava na comarca, deu com o nosso Camilo na cama, onde por

agora deixaremos, entregue aos médicos seus colegas.

 

CAPÍTULO VI

REVELAÇÃO

 

Não há muitos mistérios para um autor que sabe investigar todos os recantos do coração.

Enquanto o povo de Santa Luzia faz mil conjeturas a respeito da causa verdadeira da isenção que

até agora tem mostrado a formosa Isabel, estou habilitado para dizer ao leitor impaciente que ela

ama.

– E a quem ama? pergunta vivamente o leitor.

Ama… uma parasita. Uma parasita? É verdade, uma parasita. Deve ser então uma flor muito

linda, – um milagre de frescura e de aroma. Não, senhor, é uma parasita muito feia, um cadáver de

flor, seco, mirrado, uma flor que devia ter sido lindíssima há muito tempo, no pé, mas que hoje na

cestinha em que ela a traz, nenhum sentimento inspira, a não ser de curiosidade. Sim, porque é

realmente curioso que uma moça de vinte anos, em toda a força das paixões, pareça indiferente aos

homens que a cercam, e concentre todos os seus afetos nos restos descorados e secos de uma flor.

Ah! mas aquela flor foi colhida em circunstâncias especiais. Dera-se o caso alguns anos antes.

Um moço da localidade gostava então muito de Isabel, porque era uma criança engraçada, e

costumava chamá-la sua mulher, gracejo inocente que o tempo não sancionou. Isabel também

gostava do rapaz, a ponto de fazer nascer no espírito do pai da moça a seguinte idéia:

– Se daqui a alguns anos as coisas não mudarem por parte dela, e se ele vier a gostar

seriamente da pequena, creio que os posso casar.

Isabel ignorava completamente esta idéia do pai; mas continuava a gostar do moço, o qual

continuava a achá-la uma criança interessantíssima.

Um dia viu Isabel uma linda parasita azul, entre os galhos de uma árvore.

– Que bonita flor! Disse ela.

– Aposto que você a quer?

– Queria sim… disse a menina que, mesmo sem aprender, conhecia já esse falar oblíquo e

disfarçado.

O moço despiu o paletó com a sem-cerimônia de quem trata com uma criança e trepou pela

árvore acima. Isabel ficou em baixo ofegante e ansiosa pelo resultado. Não tardou que o

complacente moço deitasse a mão à flor e delicadamente a colhesse.

– Apanhe disse ele de cima.

Isabel aproximou-se da árvore e recolheu a flor no regaço. Contente por ter satisfeito o desejo

da menina, tratou o rapaz de descer, mas tão desastrosamente o fez, que no fim de dois minutos

jazia no chão aos pés de Isabel. A menina deu um grito de angústia e pediu socorro; o rapaz

procurou tranquilizá-la dizendo que nada era, e tentando levantar-se alegremente. Levantou-se com

efeito, com a camisa salpicada de sangue; tinha ferido a cabeça.

A ferida foi declarada leve; dentro de poucos dias estava o valente moço completamente

restabelecido.

A impressão que Isabel recebeu naquela ocasião foi profunda. Gostava até então do rapaz; daí

em diante passou a adorá-lo. A flor que ele lhe colhera veio naturalmente a secar; Isabel guardou-a

como se fora uma relíquia; beijava-a todos os dias; e de certo tempo em diante até chorava sobre

ela. Uma espécie de culto supersticioso prendia o coração da moça àquela mirrada parasita.

Não era ela porém tão mau coração que não ficasse vivamente impressionada quando soube

da doença de Camilo. Fez indagar com assiduidade do estado do moço, e cinco dias depois foi com

o pai visitá-lo à fazenda do comendador.

A simples visita da moça, se não curou o doente, deu em resultado consolá-lo e animá-lo;

viçaram-lhe algumas esperanças, que já estavam mais secas e mirradas que a parasita cuja história

acima marrei.

– Quem sabe se me não amará agora? pensou ele.

Apenas ficou restabelecido foi seu primeiro cuidado o ir à fazenda do Dr. Matos; o

comendador quis acompanhá-lo. Não o acharam em casa; estavam apenas a irmã e a filha. A irmã

era uma pobre velha, que além desse achaque, tinha mais dois: era surda e gostava de política. A

ocasião era boa; enquanto a tia de Isabel confiscava a pessoa e a atenção do comendador, Camilo

teve tempo de dar um golpe decisivo, dirigindo à moça estas palavras:

– Agradeço-lhe a bondade que mostrou a meu respeito durante a minha moléstia. Essa

mesma bondade anima-se a pedir-lhe uma coisa mais.

Isabel franziu a testa.

– Reviveu-me uma esperança há dias, continuou Camilo, esperança que já estava morta.

Será ilusão minha? Uma sua palavra, um gesto seu resolverá esta dúvida.

Isabel ergueu os ombros.

– Não compreendo, disse ela.

– Compreende, disse Camilo em tom amargo. Mas eu serei mais franco, se o existe. Amoa;

disse-lho mil vezes; não fui atendido. Agora porém…

Camilo concluiria de boa vontade este pequeno discurso, se tivesse diante de si a pessoas que

ele desejava o ouvisse. Isabel, porém, não lhe deu tempo de chegar ao fim. Sem dizer palavra, sem

fazer um gesto, atravessou a extensa varanda e foi sentar-se na outra extremidade onde a velha tia

punha à prova os excelentes pulmões do comendador.

O desapontamento de Camilo estava além de toda a descrição. Pretextando um calor que não

existia saiu para tomar ar, e ora vagaroso, ora apressado triunfava nele a irritação ou o desânimo, o

mísero pretendente deixou-se ir sem destino. Construiu mil planos de vingança, ideou mil maneiras

de ir lançar-se aos pés da moça, rememorou todos os fatos que se haviam dado com ela, e ao cabo

de uma longa hora chegou à triste conclusão de que tudo estava perdido. Nesse momento de acordo

de si: estava ao pé de um riacho que atravessava a fazenda do Dr. Matos. O lugar era agreste e

singularmente feito para a situação em que ele se achava. A uns duzentos passos viu uma cabana,

onde pareceu que alguém entoava uma cantiga do sertão.

Importuna coisa é a felicidade alheia quando somos vítima de algum infortúnio! Camilo

sentiu-se ainda mais irritado, e ingenuamente perguntou a si mesmo se alguém podia ser feliz

estando ele com o coração a sangrar de desespero. Daí a nada aparecia à porta da cabana um

homem e saía na direção do riacho. Camilo estremeceu; pareceu-lhe reconhecer o misterioso que

lhe falara no dia do Espírito Santo. Era a mesma estatura e o mesmo ar; aproximou-se rapidamente

e parou a cinco passos de distância. O homem voltou o rosto: era ele!

Camilo correu ao desconhecido.

– Enfim! disse ele.

O desconhecido sorriu-se complacentemente e apertou a mão que Camilo lhe oferecia.

– Quer descansar? perguntou-lhe.

– Não, respondeu o médico. Aqui mesmo, ou mais longe se lhe apraz, mas desde já, por

favor, desejo que me explique as palavras que me disse outro dia na igreja.

Novo sorriso do desconhecido.

– Então? disse Camilo vendo que o homem não respondia.

– Antes de mais nada, diga-me: gosta deveras da moça?

– Oh! muito!

– Jura que a faria feliz?

– Juro!

– Então ouça. O que vou contar a V.S. é verdade, porque o soube por minha mulher que foi

mucama de D. Isabel. É aquela que ali está.

Camilo olhou para a porta da cabana e viu uma mulatinha alta e elegante, que olhava para ele

com curiosidade.

– Agora, continuou o desconhecido, afastemo-nos um pouco; para que ela nos não ouça,

porque eu não desejo venha a saber-se de quem V.S. ouviu esta história.

– Afastaram-se com efeito costeando o riacho. O desconhecido narrou então a Camilo toda

a história da parasita, e o culto que até então a moça votava à flor seca. Um leitor menos sagaz

imagina que o namorado ouviu esta narração triste e abatido. Mas o leitor que souber ler adivinha

logo que a confidência do desconhecido despertou na alma de Camilo os mais incríveis sobressaltos

de alegria.

– Aqui está o que há, disse o desconhecido ao concluir, creio que V.S. com isto pode saber

em que terreno pisa.

– Oh! sim! sim! disse Camilo. Sou amado! sou amado!

Sabedor daquela novidade ardia o médico por voltar à casa, donde saíra havia tanto tempo.

Meteu a mão na algibeira, abriu a carteira e torou uma nota de vinte mil réis.

– O serviço que me acaba de prestar é imenso, disse ele; não tem preço. Isto porém é

apenas uma lembrança…

Dizendo estas palavras, estendeu-lhe a nota. O desconhecido riu-se desdenhosamente sem

responder palavra. Depois, estendeu a mão à nota que Camilo lhe oferecia, e, com grande pasmo

deste atirou-a ao riacho. O fio d’água que ia murmurando e saltando por cima das pedras, levou

consigo o bilhete, de envolta com uma folha que o vento lhe levara também.

– Deste modo, disse o desconhecido, nem o senhor fica devendo um obséquio, nem eu

recebo a paga dele. Não pense que tive tenção de servir a V.S.; não. Meu desejo é fazer feliz a filha

do meu benfeitor. Sabia que ela gostava de um moço, e que esse moço era capaz de a fazer feliz;

abri caminho para que ele chegue até onde ela está. Isto não se paga; agradece-se apenas.

Acabando de dizer estas palavras, o desconhecido voltou as costas ao médico, e dirigiu-se

para a cabana. Camilo acompanhou com os olhos naquele homem rústico. Pouco tempo depois

estava em casa de Isabel, onde já era esperado com alguma ansiedade. Isabel viu-o entrar alegre e

radiante.

– Sei tudo, disse-lhe pouco antes de sair.

A moça olhou espantada antes de sair.

– Tudo? repetiu ela.

– Sei que me ama, sei que esse amor nasceu há longos anos, quando era criança, e que

ainda hoje…

Foi interrompido pelo comendador que se aproximava. Isabel estava pálida e confusa; estimou

a interrupção, porque não saberia que responder.

No dia seguinte escreveu-lhe Camilo uma extensa carta apaixonada, invocando o amor que

ela conservara no coração, e pedindo-lhe que o fizesse feliz. Dois dias esperou Camilo a resposta da

moça. Veio no terceiro dia. Era breve e seca. Confessava que o amara durante aquele longo tempo,

e jurara não amar nunca a outro.

“Apenas isso, concluía Isabel. Quanto a ser sua esposa, nunca. Eu quisera entregar a minha

vida a quem tivesse um amor igual ao meu. O seu amor é de ontem; o meu é de nove anos; a

diferença de idade é grande demais; não pode ser bom consórcio. Esqueça-me e adeus.”

Dizer que esta carta não fez mais do que aumentar o amor de Camilo, é escrever no papel

aquilo que o leitor já adivinhou. O coração de Camilo só esperava uma confissão escrita da moça

para transpor o limite que o separava da loucura. A carta transtornou-o completamente.

 

CAPÍTULO VII

PRECIPITAM-SE OS ACONTECIMENTOS

O comendador não perdera a idéia de meter o filho na política. Justamente nesse ano havia

eleição; o comendador escreveu às principais influências da província para que o rapaz entrasse na

respectiva assembléia.

Camilo teve notícia desta premeditação do pai; limitou-se a erguer os ombros, resolvido a não

aceitar nenhuma que não fosse a mão de Isabel. Em vão o pai, o padre Maciel, o tenente-coronel lhe

mostravam um futuro esplêndido e todo semeado de altas posições. Uma só posição o contentava:

casar com a moça.

Não era fácil, decerto: a resolução de Isabel parecia inabalável.

– Ama-me, porém, dizia o rapaz consigo; é meio caminho andado.

E como o seu amor era mais recente que o dela, compreendeu Camilo que o meio de ganhar a

diferença de idade, era mostrar que o tinha mais violento e capaz de maiores sacrifícios.

Não poupou manifestações de toda a sorte. Chuvas e temporais arrostou para ir vê-la todos os

dias; fez-se escravo de seus menores desejos. Se Isabel tivesse a curiosidade infantil de ver na mão

a estrela d’alva, é muito provável que ele achasse meio de lha trazer.

Ao mesmo tempo, cessara de a importunar com epístolas ou palavras amorosas. A última que

disse foi:

– Esperarei!

Nesta esperança andou ele muitas semanas, sem que a sua situação melhorasse sensivelmente.

Alguma leitora menos exigente há de achar singular a resolução de Isabel, ainda depois de

saber que era amada. Também eu penso assim; mas não quero alterar o caráter da heroína, porque

ela era tal qual a apresento nestas páginas. Entendia que ser amada casualmente, pela única razão de

ter o moço voltado de Paris, enquanto ela gastara largos anos a lembrar-se dele e a viver unicamente

da recordação, entendia, digo eu, que isto a humilhava, e porque era imensamente orgulhosa,

resolvera não casar com ele nem com outro. Será absurdo; mas era assim.

Fatigado de assediar inutilmente o coração da moça, e por outro lado, convencido de que era

necessário mostrar uma dessas paixões invencíveis a ver se a convencia e lhe quebrava a resolução,

planeou Camilo um grande golpe.

Um dia de manhã desapareceu da fazenda. A princípio ninguém se abalou com a ausência

porque ele costumava dar longos passeios, quando porventura acordava mais cedo. A coisa porém

começou a assustar à proporção que o tempo ia passando. Saíram emissários para todas as partes, e

voltaram sem dar novas do rapaz.

O pai estava aterrado; a notícia do acontecimento correu por toda a parte em dez léguas ao

redor. No fim de cinco dias de infrutíferas pesquisas soube-se que um moço, com todos os sinais de

Camilo, fora visto a meia légua da cidade, a cavalo. Ia só e triste. Um tropeiro asseverou depois ter

visto um moço junto de uma ribanceira, parecendo sondar com o olhar que probabilidade de morte

lhe traria uma queda.

O comendador entrou a oferecer grossas quantias a quem lhe desse notícia segura do filho.

Todos os seus amigos despacharam gente a investigar as matas e os campos, e nesta inútil labutação

correu uma semana.

Será necessário dizer a dor que sofreu a formosa Isabel quando lhe foram dar notícia do

desaparecimento de Camilo? A primeira impressão foi aparentemente nenhuma; o rosto não revelou

a tempestade que imediatamente rebentara no coração. Dez minutos depois da tempestade subiu aos

olhos e transbordou num verdadeiro mar de lágrimas.

Foi então que o pai teve conhecimento da paixão tão longo tempo incubada. Ao ver aquela

explosão não duvidou que o amor da filha pudesse vir a ser-lhe funesto. Sua primeira idéia foi que o

rapaz desaparecera para fugir a um enlace indispensável. Isabel tranqüilizou-o dizendo que, pelo

contrário, era ela quem se negara a aceitar o amor de Camilo.

– Fui eu que o matei! exclamava a pobre moça.

O bom velho não compreendeu muito como é que uma moça apaixonada por um mancebo, e

um mancebo apaixonado por uma moça, em vez de caminharem para o casamento, tratassem de se

separar um do outro. Lembrou-se que o seu procedimento fora justamente o contrário, logo que

travou o primeiro namoro.

No fim de uma semana foi o Dr. Matos procurado na sua fazenda pelo nosso já conhecido

morador da cabana, que ali chegou ofegante e alegre.

– Está salvo! disse ele.

– Salvo! exclamou o pai e a filha.

– É verdade, disse Miguel (era o nome do homem); fui encontrá-lo no fundo de uma

ribanceira, quase sem vida, ontem de tarde.

– E por que não vieste dizer-nos?… perguntou o velho.

– Porque era preciso cuidar dele em primeiro lugar. Quando voltou a si quis ir outra vez

tentar contra os seus dias; eu e minha mulher impedimo-lo de fazer tal. Está ainda um pouco fraco;

por isso não veio comigo.

O rosto de Isabel estava radiante. Algumas lágrimas, poucas e silenciosas, ainda lhe correram

dos olhos; mas eram já de alegria e não de mágoa.

Miguel saiu com a promessa de que o velho iria lá buscar o filho do comendador.

– Agora, Isabel, disse o pai, apenas ficou só com ela, que pretendes fazer?

– O que me ordenar, meu pai!

– Eu só ordenarei o que te disser o coração. Que te diz ele?

– Diz…

– O que?

– Que sim.

– É o que devia ter dito há muito tempo, porque…

O velho estacou.

– Mas se a causa deste suicídio for outra? pensou ele. Indagarei tudo.

Comunicou a notícia ao comendador, não tardou que este se apresentasse em casa do Dr.

Matos, onde pouco depois chegou Camilo. O mísero rapaz trazia escrita no rosto a dor de haver

escapado à morte trágica que procurara; pelo menos, assim o disse muitas vezes em caminho, ao pai

de Isabel.

– Mas a causa dessa resolução? perguntou-lhe o doutor.

– A causa… balbuciou Camilo que espreitava a pergunta; não ouso confessá-la…

– É vergonhosa? perguntou o velho com um sorriso benévolo.

– Oh! não!…

– Mas que causa é?

– Perdoa-me, se eu lha disser?

– Por que não?

– Não, não ouso… disse resolutamente Camilo.

– É inútil, porque eu já sei.

– Ah!

– E perdôo a causa, mas não lhe perdôo a resolução; o senhor fez uma coisa de criança.

– Mas ela despreza-me!

– Não… ama-o!

Camilo fez aqui um gesto de surpresa perfeitamente imitado, e acompanhou o velho até a

casa, onde encontrou o pai, que não sabia se devia mostrar-se severo ou satisfeito.

Camilo compreendeu logo ao entrar o efeito que o seu desastre causara no coração de Isabel.

– Ora pois! disse o pai da moça. Agora que ressuscitamos é preciso prendê-lo à vida com

uma cadeia forte.

E sem esperar a formalidade do costume nem atender às etiquetas normais da sociedade, o pai

de Isabel deu ao comendador a novidade de que era indispensável casar os filhos. O comendador

ainda não voltara a si da surpresa de ter encontrado o filho, quando ouviu esta notícia; e se toda a

tribo dos Xavantes viesse cair em cima dele armada de arco e flecha não sentiria espanto maior.

Olhou alternadamente para todos os circunstantes como se lhes pedisse a razão de um fato aliás mui

natural. Afinal explicaram-lhe a paixão de Camilo e Isabel, causa única do suicídio meio executado

pelo filho. O comendador aprovou a escolha do rapaz e levou a sua galanteria a dizer que no caso

dele teria feito o mesmo, se não contasse com a vontade da moça.

– Serei enfim digno do seu amor? perguntou o médico a Isabel quando se achou só com ela.

– Oh! sim!… disse ela. Se morresse, eu morreria também!

Camilo apressou-se a dizer que a Providência velara por ele; e não soube nunca o que é que

ele chamava Providência.

Não tardou que o desenlace do episódio trágico fosse publicado na cidade e seus arredores.

Apenas Leandro Soares soube do casamento projetado entre Isabel e Camilo ficou

literalmente fora de si. Mil projetos lhe acudiram à mente, cada qual mais sanguinário; em sua

opinião eram dois pérfidos que o haviam traído; cumpria tirar uma solene desforra de ambos.

Nenhum déspota sonhou nunca mais terríveis suplícios do que os que Leandro Soares

engendrou na sua escalada imaginação. Dois dias e duas noites passou o pobre namorado em

conjeturas estéreis. No terceiro dia resolveu ir simplesmente procurar o venturoso rival, lançar-lhe

em rosto a sua vilania e assassiná-lo depois.

Muniu-se de uma faca e partiu.

Saía da fazenda o feliz noivo, descuidado da sorte que o esperava. Sua imaginação ideava

uma vida cheia de bem-aventurança e deleites celestes; a imagem da moça dava a tudo o que o

rodeava uma cor poética. Ia todo engolfado nestes devaneios quando viu em frente de si o preterido

rival. Esquecera-se dele no meio da sua felicidade; compreendeu o perigo e preparou-se para ele.

Leandro Soares, fiel ao programa que se havia imposto, desfiou um rosário de impropérios

que o médico ouviu calado. Quando Soares acabou e ia dar à prática o ponto final sanguinolento,

Camilo respondeu:

– Atendi a tudo o que me disse; peço-lhe agora que me ouça. É verdade que vou casar com

essa moça; mas também é verdade que ela não o ama. Qual é o nosso crime neste caso? Ora, ao

passo que o senhor nutre a meu respeito sentimentos de ódio, eu pensava na sua felicidade.

– Ah! disse Soares com ironia.

– PE verdade. Disse comigo que um homem das suas aptidões não devia estar eternamente

dedicado a servir de degrau aos outros; e então, como meu pai quer à força fazer-me deputado

provincial, disse-lhe que aceitava o lugar para o dar ao senhor. Meu pai concordou; mas eu tive de

vencer resistências políticas e ainda agora trato de quebrar algumas. Um homem que assim procede

creio que lhe merece alguma estima, – pelo menos não lhe merece tanto ódio.

Não creio que a língua humana possua palavras assaz enérgicas para pintar a indignação que

se manifestou no rosto de Leandro Soares. O sangue subiu-lhe todo às faces, enquanto os olhos

pareciam despedir chispas de fogo. Os lábios trêmulos como que ensaiavam baixinho uma

impressão eloqüente contra o feliz rival. Enfim, o pretendente infeliz rompeu nestes termos:

– A ação que o senhor praticou era já bastante infame; não precisava juntar-lhe o escárnio…

– O escárnio! interrompeu Camilo.

– Que outro nome darei eu ao que me acaba de dizer? Grande estima, na verdade, é a sua

de me roubar a maior, a única felicidade, que eu podia ter, vem oferecer-me uma compensação

política!

Camilo conseguiu explicar que não lhe oferecia nenhuma compensação; pensara naquilo por

conhecer as tendências políticas de Soares e julgar que deste modo lhe seria agradável.

– Ao mesmo tempo, concluiu gravemente o noivo, fui levado pela idéia de prestar um

serviço à província. Creia que nenhum caso, ainda que me devesse custar a vida, proporia coisa

desvantajosa à província e ao país. Eu cuidava servir a ambos apresentando a sua candidatura, e

pode crer que a minha opinião será a de todos.

– Mas o senhor falou de resistências… disse Soares cravando no adversário um olhar

inquisitorial.

– Resistências, não por oposição pessoal, mas por conveniências políticas, explicou

Camilo. Que vale isso? Tudo se desfaz com a razão e os verdadeiros princípios do partido que tem a

honra de o possuir entre seus membros.

Leandro Soares não tirava os olhos de Camilo; nos lábios pairava-lhe agora um sorriso irônico

e cheio de ameaças. Contemplou-o ainda alguns instantes sem dizer palavra, até que de novo

rompeu o silêncio.

– Que faria o senhor no meu caso? perguntou ele dando ao seu irônico sorriso um ar

verdadeiramente lúgubre.

– Eu recusava, respondeu afoitamente Camilo.

– Ah!

– Sim, recusava, porque não tenho vocação política. Não acontece com o senhor, que a tem,

e é por assim dizer o apoio do partido em toda a comarca.

– Tenho essa convicção, disse Soares com orgulho.

– Não é o único: todos lhe fazem justiça.

Soares entrou a passear de uma lado para outro. Esvoaçavam-lhe na mente terríveis

inspirações, ou d humanidade, reclamava alguma moderação no gênero de morte que daria ao rival?

Decorreram cinco minutos. Ao cabo deles, Soares parou em frente de Camilo e ex-abrupto lhe

perguntou:

– Jura-me uma coisa?

– O quê?

– Que a fará feliz?

– Já jurei a mim mesmo; é o meu mais doce dever.

– Seria meu esse dever se a sorte se não houvesse pronunciado contra mim; não importa;

estou disposto a tudo.

– Creia que eu sei avaliar o seu grande coração, disse Camilo, estendendo-lhe a mão.

– Talvez. O que não sabe, o que não conhece, é a tempestade que fica na alma, a dor

imensa que me há de acompanhar até à morte. Amores destes vão até à sepultura.

Parou sacudiu a cabeça, como para expelir uma idéia sinistra.

– Que pensamento é o seu? perguntou Camilo vendo o gesto de Soares.

– Descanse, respondeu ele; não tenho projeto nenhum. Resignar-me-ei à sorte; e se aceito

essa candidatura política que me oferece é unicamente para afogar nela a dor que me abafa o

coração.

Não sei se este remédio eleitoral servirá para todos os casos de doença amorosa. No coração

de Soares produziu uma crise salutar, que se resolveu em favor do doente.

Os leitores adivinham bem que Camilo nada havia dito em favor de Soares; mas empenhou-se

logo nesse sentido, e o pai com ele, e afinal conseguiu-se que Leandro Soares fosse incluído numa

chapa e apresentado aos eleitores na próxima campanha. Os adversários do rapaz, sabedores das

circunstâncias em que lhe foi oferecida a candidatura, não deixaram de dizer em todos os tons, que

ele vendera o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.

Havia já um ano que o filho do comendador estava casado, quando apareceu na sua fazenda

um viajante francês. Levava cartas de recomendação de um dos seus professores de paris. Camilo

recebeu-o alegremente e pediu-lhe notícias da França, que ele ainda amava, dizia, como a sua pátria

intelectual. O viajante disse-lhe muitas coisas, e sacou por fim da mala um maço de jornais.

Era o Fígaro.

– O Fígaro! exclamou Camilo, laçando-se aos jornais.

Eram atrasados mas eram parisienses. Lembravam-lhe a vida que ele tivera durante longos

anos, e posto nenhum desejo sentisse de trocar por ela a vida atual, havia sempre uma natural

curiosidade em despertar recordações de outro tempo.

No quarto ou quinto número que abriu deparou-se-lhe uma notícia que ele leu com espanto.

Dizia assim:

“Uma célebre Leontina Caveau, que se dizia viúva de um tal príncipe Alexis, súdito do czar,

foi ontem recolhida à prisão. A bela dama (era bela!) não contente de iludir alguns moços incautos,

alapardou-se com todas as jóias de uma sua vizinha, Mlle. B… A roubada queixou-se a tempo de

impedir a fuga da pretendida princesa.”

Camilo acabava de ler pela quarta vez esta notícia, quando Isabel entrou na sala.

– Estás com saudades de Paris? perguntou ela vendo-o tão atento a ler o jornal francês.

– Não disse o marido, passando-lhe o braço à roda da cintura; estava com saudades de ti.

Jornal das Famílias, 1872.

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1

Fonte: ASSIS, Machado de. Histórias da meia-noite. São Paulo : LEL, [s.d.]. p. 176-246. (Coleção obras ilustradas de Machado de Assis, v.1).

Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br&gt;

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por: Jacqueline Rizental Machado – Curitiba/PR. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível.

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PAI CONTRA MÃE1

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um
deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres.
A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a
boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da
cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque
geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí
ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal
máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma
vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não
cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a
haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com
chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,
onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se,
entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas
comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que
seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse
aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico,
se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a
quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", — ou "receberá uma boa
gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de
preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com
todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou
estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o
acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
Cândido Neves, — em família, Candinho,– é a pessoa a quem se liga a história de uma
fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um
defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade;
é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo
que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o
bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira
boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas
estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao
Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de
obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas,
porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para
obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições.
Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não
fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para
cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou
muito.
Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e
cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados
apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes,
olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O
que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos.
Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia
a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe;
algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a
outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o
possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi–
para lembrar o primeiro ofício do namorado, — tal foi a página inicial daquele livro, que
tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e
foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que
por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo,
nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em
demasia a patuscadas.
–Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto. –Não, defunto
não; mas é que…
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se
foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora
viesse agravar a necessidade.
–Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
–Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara. Tia Mônica devia ter-lhes feito a
advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era
amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram
objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e
o riso digeria-se sem esforço.
Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma cousa e outra; não tinha emprego
certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo
específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia. porém, deu sinal de si a
criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada
ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
–Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia
grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que,
além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força
de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era
escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
–Vocês verão a triste vida, suspirava ela. –Mas as outras crianças não nascem também?
perguntou Clara. –Nascem, e acham sempre alguma cousa certa que comer, ainda que
pouco… –Certa como? –Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é
que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero mas
muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
–A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer
jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau… –Bem sei, mas somos três. —
Seremos quatro. –Não é a mesma cousa. — Que quer então que eu faça, além do que
faço? — Alguma cousa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do
armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo… Não fique
zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você
passa semanas sem vintém. — Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de
sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase
nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia
rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos,
melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a
estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço
de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às
pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido,
gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a
agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de cousas remotas,
via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o
nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso.
Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas
mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas
geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como
dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o
negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais,
copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor.
Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles
pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura.
Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelo aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de
coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à
tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de
algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo
fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou
um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe
deram os parentes do homem.
–É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o
equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro
emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra cousa, não pela razão do conselho, mas por
simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior
é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer.
Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja
narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser
mais amargos.
–Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever,
quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de
levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver
palavra mais dura de tolerar a dous jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la,
guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular… Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho
arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que
era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio. —
Titia não fala por mal, Candinho. –Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem,
seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e
o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de
aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os
filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será
bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não
se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à
míngua. Enfim…
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na
alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal
franqueza e calor,– crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a
amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz
baixa. A ternura dos dous foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
–Quem é? perguntou o marido. –Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o
inquilino. Este quis que ele entrasse.
–Não é preciso… –Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se, deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à
penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais;
se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para
regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o
que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma
inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
–Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava
com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos
anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou
algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou
recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não
alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes
emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de
alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu
emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio.
Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dous, para que Cândido Neves, no
desespero da crise começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio
seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara,
sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a
casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que
cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois
nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu
em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua
dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria.
Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe
deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite
seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos . As gratificações pela maior
parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a
cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido.
Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio;
imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista
nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande
esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do
Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um
farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga,
três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar
como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros
fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma
a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não
obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que
tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de
ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que
vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação
do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem
recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao
filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai
pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é
que o agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno.
Ao entrar na Rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. –Hei
de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou
sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que
ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na
direção do Largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida.
Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade
real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a
poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou,
achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria
buscá-la sem falta.
–Mas…
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao
ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia
a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata
fujona. –Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de
corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era
já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que
andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de
costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que
a soltasse pelo amor de Deus.
–Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe
por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me
solte, meu senhor moço! — Siga! repetiu Cândido Neves. –Me solte! –Não quero
demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava
ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia.
Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com
açoutes,–cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele
lhe mandaria dar açoutes.
–Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou
Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele.
Também é certo que não costumava dizer grandes cousas. Foi arrastando a escrava pela
Rua dos Ourives, em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a
luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O
que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que
devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas
em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
–Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. — É ela mesma. –Meu senhor! –Anda,
entra…
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os
cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta milréis,
enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia,
levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os
gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que
horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem
querer conhecer as conseqüências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis
esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro
com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que
pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para
a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida
a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é
verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga.
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se
lhe dava do aborto.
–Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

1Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br&gt;

A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo

Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:

NUPILL – Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística

<http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html&gt;

Universidade Federal de Santa Catarina

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Conheça um opouco de Natsumi Soseki, escritor japonês que foi comparado com o nosso Machadão. Kokoro é o título de um de seus livros. E o texto que se segue contém um pouco da sua vida, obra, bem como, a respeito do livro em questão.

Natsumi Soseki – Kokoro (traduzido do japonês por EDWIN MCCLELLAN)

Prólogo1 do tradutor

 

Foi no decurso da dinastia Meiji, a qual durou de 1868 a 1920, que o Japão emergiu como uma nação moderna; e foi na última parte desse período que o romance moderno japonês alcançou sua maturidade, e assim, verdadeiros mestres – os quais tinham, em essência, um modelo (forma) literária ocidental – começaram a aparecer. Desses romancistas Natsume Soseki, provavelmente, foi o mais profundo e versátil.

Soseki nasceu em Tókyo, no ano de 1867, quando a cidade ainda era conhecida por seu nome antigo, a saber, Yedo. Ele foi educado na Imperial University, onde estudou literatura inglêsa. Em 1896 trabalhou no Fifth National College, em Kumamoto, e em 1900, foi enviado à Inglaterra como um literato (govermment scholar). Retornou ao Japão em 1903, e em abril do mesmo ano, Natsume sucedeu Lafcadio Hern como professor-pesquisador (lecturer) em literatura inglesa na Imperial University. Insatisfeito com a vida acadêmica, porém, em 1907 ele decidiu dedicar todo seu tempo a escrever romances e ensaios.

Soseki escreveu Koroko2 em 1914, ou seja, dois anos depois da morte do imperador Meiji, e dois anos antes de sua própria morte. Esse fomance foi composto no ápice de sua carreira, quando sua reputação como romancista já estava estabelecida. Neste romance, bem como em todos os seus escritos de relevo, Natsume trata sobre a solidão (islolamento) do homem do mundo moderno. De tal forma, que em um dos seus romances, o protagonistra clama: "Como eu posso escapar [da solidão], a não ser através da fé, loucura, ou da morte?" E para Sensei, o protagonista de Kokoro, o único modo de escapar de sua solidão é – a morte.

IT WAS during the Meiji era, which lasted from 1868 to 1912, that Japan emerged as a modern nation; and it was towards the latter part of this period that the modern Japanese novel reached its maturity, and true masters of what was essentially a western literary form began to appear. Of these novelists, Natsume Soseki was perhaps the most profound and the most versatile (vilúvel).

Soseki was born in Tokyo in 1867, when the city was still known by its old name of Yedo. He was educated at the Imperial University, where he studied English literature. In 1896, he joined the staff of the Fifth National College in Kumamoto, and in 1900, he was sent to England as a government scholar. He returned to Japan in 1903, and in April of the same year, he succeeded Lafcadio Hearn as lecturer in English literature at the Imperial University. He was dissatisfied with academic life, and in 1907 decided to devote all his time to writing novels and essays.

Soseki wrote Kokoro in 1914, two years after the death of Emperor Meiji, and two years before his own death. It was written at the peak of his career, when his reputation as a novelist was already established. In it, as in all his other important novels, Soseki is concerned with man’s loneliness in the modern world. It is in one of his other novels that the protagonist cries out: "How can I escape, except through faith, madness, or death?" And for Sensei, the protagonist of Kokoro, the only means of escape from his loneliness is death.

O suicídio do general Nogi, acontecimento tal que é comentado nas partes II e III de Kokoro, é, penso eu, um tanto quanto significativo para o entendento – não apenas do romance – mas também de Soseki. O acontecimento causou uma grande comoção na época. Afinal de contas, Nogi bem como Admiral Togo, foram, provavelmente, os heróis mais aclamados da guerra russo-japonesa. Entretanto, quando jovem, o general perdeu sua posição (banner) para o inimigo (na Satsuma Rebellion); devido a isso, trinta e cinco anos mais tarde – imediatamente depois da morte do imperador Meinji – ele deu cabo de sua vida. Para que pudesse remir sua honra, teve que aguardar não mais ter que servir seu imperador. E, tendo em mente o ponto de vista moderno do escritor, provavelmente não simpatizou com o ato do general – mas o personagem Sensei sim. Apesar da posição de Soseki a respeito da tradicional (old-fashioned) noção de honra, porém, ele não conseguiu privar-se de sentir o baque, afinal de contas, ele esteve – de alguma forma – imbuído no mundo que gerou o general Nogi. Esta é a razão pela qual – o crepúsculo da Era Meiji – é motivo de luto para Sensei: " Na noite do Funeral Imperial, eu me recolhi em meu escritório e ouvi o clamor do canhão. Para mim, soou como a última elegia da passagem de uma era. "

Kokoro é narrado, do início ao fim, em primeira pessoa. Devido a isso, o estilo é intencionalmente simples. No original, há beleza soba a superfície simples, especialmente na terceira parte. Eu só posso ter a esperança que, ao menos um pouco de graciosidade, tenha perdurado na tradução.

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1Prólogo traduzido, do inglês, por a.topos

2 A melhor tradução da palavra japonesa "kokoro" que eu já vi é de Lafcadio Hearn: "the heart of things". – tá! Sei que essa nota não ajudou nada, mas se vira aí (me ajuda): fiquei horas e horas traduzindo esse texto, não aguento mais olhar pra ele! (é que essa parte – na verdade – não é nota de rodapé, e aparece no final do prefácio…)

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